O roteiro de hoje levar-nos-á a uma das mais tradicionais zonas de Lisboa
onde é possível "desenhar" um percurso que em si mesmo justificaria a
vinda a este local sem necessidade sequer de referir pontos culturalmente
relevantes, sendo bastante para o efeito passear pelas pitorescas e ruas cheias
de vida do bairro de Alfama.
Apesar de nem sempre bem conservadas e particularmente nalguns locais as
casas apresentarem sinais de algo que alguns consideram com "arte
urbana" e que outros tendencialmente postulam de "vandalismo" a
verdade é que dificilmente a pintura original deste local teria vestígios dos
denominados grafitis, pelo que cada um os catalogue como quiser sendo que,
pessoalmente, prefiro a cor branca, não fosse esta cidade de Lisboa também ela
a cidade branca.
Mas como o objetivo destes roteiros é, antes de mais, proporcionar sugestões
culturais e, já se percebeu, gastronómicas, a quem simultaneamente dedique um
pouco do seu tempo à leitura dos mesmos e, mais ainda, tenha gosto por
conhecê-los, então não há como fugir ao assunto e, sem demoras, passar ao que
verdadeiramente importa.
Por isso mesmo o roteiro tem o seu início nas Portas do Sol, local onde
aliás se pode desfrutar de uma das mais belas vistas sobre o Tejo que a cidade
de Lisboa tem para oferecer, em cujo largo se situa um palácio do século XVIII,
o palácio Azurara, onde se encontra instalado o Museus das Artes Decorativas.
O interessante deste museu é que reúne um riquíssimo acervo pertencente à coleção
Ricardo Espírito Santo Silva mas igualmente o facto de que esse mesmo acervo é
o resultado do trabalho de recuperação e restauro levado a cabo pela escola com
o nome do seu fundador e que tem deixado a sua marca de qualidade em muitos
outros locais pela cidade.
Há, contudo, sinais de preocupação com este espaço e esta coleção em virtude
dos problemas financeiros, cuja natureza não cabem nestes roteiros, que
envolvem o Grupo BES/Novo Banco, havendo o risco de, num futuro próximo, a
riqueza que agora é pública se tornar objecto de usufruto privado em virtude da
alienação da colecção para saldar outras dívidas.
Admito, portanto, que este espaço também possa constituir uma forma de
alerta para, por via da divulgação, impedir que este excelente museu deixe a
médio prazo de o ser, impedindo não apenas a possibilidade de o visitarmos
mas igualmente a continuidade de uma actividade de mérito inquestionável que
cabe à escola de restauro.
Um pouco mais "abaixo" junto à estação de Santa Apolónia
encontramos o Museu do Exército, um local relativamente datado, entenda-se no
qual se percebe não são feitos investimentos de modernização há bastante tempo,
mas que acaba por ter nesse aspecto talvez o seu maior charme.
Ou seja, o facto de parecer aos olhos do visitante como que se tivesse
parado no tempo é o aditivo necessário para imaginar que tudo aquilo que
podemos encontrar no seu interior e que, no essencial - e não é pouco -
percorre a história militar portuguesa e, em particular, a participação do CEP
na 1ª guerra mundial, se encerra temporalmente naquele espaço, incluindo o
próprio edifício, o que em bom rigor até fará sentido, tendo em conta que a
partir de 1918 praticamente deixou de haver história militar em Portugal.
É um pouco isto que este museu nos traz, isto é, memórias de um passado que
já não volta, do qual resta apenas aquilo que o tempo se encarregou de
conservar.
Se o roteiro começou em Alfama então em Alfama há-de acabar.
E por isso mesmo o local ideal para que isso aconteça é no
restaurante "A Baiuca".
Nota prévia, convém marcar lugar.
E porquê? Haverá então que ler o que se seguirá.
Este típico restaurante de fados em Alfama terá cerca de 5 ou 6 mesas, que não levam mais do que 8 pessoas e é aqui que começa a diversão.
Normalmente é um pressuposto em qualquer restaurante que não tenhamos de partilhar essa mesa com alguém que nem remotamente conhecemos. Aqui não, chegamos e sentamo-nos onde houver lugar. O resto é o que as pessoas (quase todos estrangeiros) à mesa quiserem que seja, isto é, quase sempre acabam a noite a falar uns com os outros como se fossem amigos de longa data.
Mas o próprio conceito de "acabar a noite" não tem o mesmo significado que terá noutros contextos.
Dificilmente será possível encontrar outro local onde seja possível estar sentado à mesa a partir das 20h e só sair quando se quiser, porque ninguém nos dirá em algum momento que o nosso tempo acabou e há mais pessoas à espera.
Não. Os donos fazem questão de não "despachar" ninguém, porque toda a refeição acaba por se prolongar por várias horas.
Repete-se então a pergunta. E porquê?
Porque, diz a tradição, que enquanto se canta o fado se faça silêncio.
Ora como quase toda a noite o restaurante é visitado por diferentes fadistas que, num tom verdadeiramente popular, entoam versos com mais ou menos desafinação acompanhados à guitarra num dos cantos deste pequeno espaço, difícil mesmo é estar simultaneamente a servir refeições e a ouvir fado ao mesmo tempo.
Em boa verdade é até necessário esperar algum tempo pela primeira pausa - que não se sabe ao certo quando virá - para que comecem a circular os pratos pedidos à chegada.
De resto não há ninguém que não cante, entre convidados, o dono (que abre as "hostilidades"), a esposa, a cozinheira, algumas figuras tão patuscas que entre "atuações" esperam novamente a sua vez à porta com um cigarro numa mão e um copo de vinho na outra.
No final a conta não é pequena nem excessivamente grande, mas como nos dizia a dona/fadista, ao despedir-se de nós com direito a dois beijinhos, "eu não digo a ninguém para sair, por isso tenho os mesmos Clientes toda a noite". Nem mais.
Quando ouvirem dizer "Alfama é tudo isto". Acreditem que é verdade.