domingo, 8 de abril de 2018

Isto nunca aconteceu

"If history repeats itself, and the unexpected always happens, how incapable must Man be of learning from experience?"

(George Bernard Shaw)


Quando os sonhos que vamos construindo ao longo da vida envolvem viajar por países que não aquele que define a nossa nacionalidade é expectável que, como qualquer sonho, deixem de existir fronteiras relativamente a tudo aquilo que gostariamos um dia de ver ao vivo e, dessa forma, verificar "in loco" se as imagems criadas na nossa mente correspondem ou não à realidade quando colocados perante a mesma.

Normalmente essas mesmas imagens são representativas de locais de extrema beleza ou que oferecem um convite a uma experiencia agradável a todos os níveis algo que aumenta exponencialmente as nossas expectativas sobre qualquer local que será directamente proporcional à fruição que podemos pessoalmente retirar de tal local quando colocados frente a frente com a materialização dos nossos sonhos ou inversamente proporcional se a realidade excedia os referidos sonhos, vulgarmente definidos como desilusão.

Sucede, porém, haver locais que fazendo parte do nosso imaginário não o são por serem imediatamente associados a um conceito de beleza nem tão pouco a sensações que possam ser catalogadas como sequer agradáveis e, no entanto, fazemos questão de as visitar pelo menos uma vez na vida, sem que daí decorra uma presunção de masoquismo.

Nesse aspecto a visita a campos de concentração "sobreviventes" da segunda guerra mundial são o paradigma de tal binómio sonho-pesadelo a que muitos de nós nos sujeitamos voluntáriamente numa espécie de misto entre a redenção pessoal e a curiosidade quase voyerista associada a um local que, tempos houve, se encontrava nos antipodas de um local de turismo mas, bem pelo contrário, configurava a marca do horror supremo do ser humano sobre o seu semelhante à luz de conceitos raciais cujos fins justificariam todos os meios.

Foi com este enquadramento que uma visita à lindissima cidade de Cracóvia não poderia deixar de incluir no seu itinerário uma visita ao que resta dos campos de concentração de Auschwitz e  Auschwitz-Birkenau também conhecido por Auschwitz II, localizados a cerca de uma hora de Cracóvia.

Mal se chega a este local sente-se uma atmosfera estranha, indiscritivel em simples linhas, uma espécie de desconforto, fruto muito provavelmente da indefinida antecipação daquilo que nos espera para além daquilo que é imediatamente perceptivel por detrás da porta de entrada para o primeiro campo, o de Auschwitz, não muito diferente do acesso a qualquer local turistico.

O primeiro choque chega logo depois. Não porque nos deparemos com imagens de prisioneiros deambulando de um lado para o outro mas por nos confrontarmos com um dos símbolos iconográficos daquele local, a porta encimada por uma placa de ferro que nos anuncia numa que naquele local "o trabalho liberta": Arbeit macht frei.



De alguma forma todos nós já vimos este sinal de falsa libertação, misto de ironia e cinismo como que anunciando um destino que jamais se confirmaria para grande parte daqueles que um dia alí entraram.

Auschwitz I está bastante bem conservado, provavelmente por decisão de assim preservar aquele espaço para memória das futuras gerações, contrariamente ao que sucedeu à quase generalidade dos muitos campos de concentração espalhados pela Europa, alguns dos quais destruidos de forma apressada pelos próprios nazis no momento da sua deserção como que a querer esconder fisicamente aquilo que a memória haveria de recuperar.

Os muitos e diversos pavilhões encontram-se imaculados do ponto de vista estrutural e o seguimento da visita "convida-nos" a entrar em alguns deles, poucos, deixando o nosso imaginário a pensar no que existirá no interior de todos os outros. Provavelmente nada, mas a verdade é que parece sempre que estamos sempre a ser observados por detrás daquelas janelas fechadas.

A verdade é que é precisamente no interior dos pavilhões visitáveis que a verdadeira imagem do horror entra pelos nossos olhos. É ali que vemos as muitas fotografias de prisioneiros mortos naquele local, os incontáveis pertencentes deixados à entrada naquele local, desde produtos de higiene, malas de uma viagem com destino mas sem fim, brinquedos, roupas, sapatos e cabelo, sim, imenso cabelo, o que fica daqueles corpos nus, calvos, esqueléticos, já sem vida apesar de ainda vivos.

Não se ouvem choros convulsivos ou sinais de drama inusitados. Ouve-se, isso sim, o silêncio de quem passa apressadamente por cada uma das salas. Talvez cada um pense à sua maneira que aquilo que está perante os seus olhos não pode ter acontecido. 

O campo encontra-se integralmente rodeado de um arame farpado formado num duplo corredor, previamente sinalizado com placas dizendo "Halt! Stój" (Stop!Stand!) sinalizada com um crâneo e duas ossadas ao estilo dos barcos piratas, mais uma imagem do nosso imaginário da impossibilidade de dalí sair com vida. Aqui e acolá outros sinais do horror: uma barra de ferro onde eram enforcados alguns prisioneiros ou ainda o muro dos fuzilamentos, onde a orquestra tocava à passagem dos condenados, mas também o local onde, ironia do destino, haveria de ser enforcado dois anos após o final da segunda grande guerra, o infame comandante daquele campo, Rudolf Hoess.

Era chegado o momento de partir para Auschwitz-Birkenau.

A entrada é conhecida. Mais uma imagem do nosso firmamento. Uma espécie de estação de caminho de ferro onde chegavam os comboios repletos de prisioneiros que alguns filmes de Hollywood se encarregaram de tornar "famoso". No final da linha resta uma carruagem, devidamente restaurada, símbolo da desumanidade que começava no transporte daquela "carga" involuntária, que haveria de continuar na "escolha" logo após a saída do seu interior, entre homens e mulheres, entre velhos e crianças, entre aqueles que haveriam de morrer de imediato ou ajudar nas tarefas daquele campo até que finalmente chegasse também o seu dia.

Este campo é consideravelmente maior do que o primeiro mas, comparativamente a este, choca bastante menos por estar, em grande parte, quase inteiramente destruido. Restam algumas casernas onde podemos ver as condições desumanas onde eram colocados os prisioneiros, alinhados em espécies de beliches de três andares onde proliferavam todo o tipo de doenças, com lareiras onde não ardia qualquer lume que os aquecesse.

O momento mais simbólico acaba por ser a entrada numa das camaras de gás, a unica que não foi destruida a tempo pelos nazis. A sensação não podia ser mais estranha. Nada nos remete para a natureza macabra daquele local, nem a luz que entra pelo tecto onde naquele tempo era despejado o gás Zyklon B. Um pouco mais à frente encontramos os crematórios, também eles uma pálida imagem do que seria aquele local.

No lado oposto ao da improvisada estação de comboio situam-se os restos das outras duas câmaras de gás, mas também os locais onde eram despejados os corpos. Apenas a sinalética nos alerta para tal facto. Mas é neste local que fica a imagem, mais uma, que vale por mil palavras: um velho judeu sentado numa pedra parece meditar. Imediatamente pensamos o que passará pela sua cabeça, se será ele próprio uma vitima daquele local. Apetece-me falar como ele, mas o respeito impede-me. Nunca saberei em que é que ele medita. Uma coisa tenho a certeza, será de uma forma ou de outra uma memória viva daquele local.

Naqueles locais terão morrido cerca de 1.300.000 mil seres humanos, "culpados" pelo simples facto serem da religião ou etnias "erradas", em função da sua orientação sexual, intelectuais ou elementos de uma resistência.

Ainda assim e apesar de todas as evidências existe ainda quem teime em negar essas mesmas evidências, que tudo aquilo que os nossos olhos não é mais do que afinal de contas uma ilusão, uma espécie de farsa à escala global e, por isso mesmo, uma solução que importa repetir e dar continuidade à "obra" inacabada de um líder que levou uma nação, um continente e uma religião ao abismo da destruição.

O tempo é em si mesmo um ditador. O elemento que dilui a memória colectiva que vai passando de geração para geração, ligando o passado e o presente, mas que por se encontrar intimamente ligada às emoções e experiências pessoais acaba por se suspender no tempo, projectando-se cada vez com maior dificuldade para o futuro.

Talvez por isso mesmo após a primeira grande guerra talvez fosse inimaginável que 30 anos depois o mundo voltaria a estar envolto numa segunda batalha à escala global precisamente com os mesmos intervenientes. Devemos então aguardar pacientemente que a história inexoravelmente se repita?

Poderá cada um responder por si embora, idealmente, a resposta deverá ser em função de uma consciência colectiva, na esteira de Émile Durkheim, em que o colectivo, entendido como uma sociedade que medeia os conflitos individuais e sociais, se sobrepõe ao individualismo, por definição egoísta.