A política, já todos sabermos, é fértil na utilização de palavras "caras", pressupondo que o ouvinte ou o leitor, consoante o meio pelo qual acede à informação, optará quase sempre por não questionar (ou questionar-se) sobre o respectivo sentido, tudo se passando como se, no fundo, essas mesmas palavras tivessem um alcance de tal maneira substantiva que a sua não compreensão deixa de ser um "problema" do respectivo emissor mas do correspondente receptor.
No caso vertente refiro-me em particular a uma expressão que surge frequentemente por alturas das eleições europeias, período durante o qual os partidos e os cidadãos são "chamados" a discutir as "questões europeias", operando dessa forma a separação entre tais políticas e a política mais vulgarmente discutida de carácter "caseiro" que, por essa mesma via, deverá ser relegada para um "segundo plano".
O próprio Presidente da República na sua comunicação ao país anunciando a data do plebiscito fez questão de fazer um "aviso à navegação" de que os portugueses têm "o direito de ser esclarecidos" sobre as questões europeias na medida em que estas são "demasiado sérias", tudo isto porque as eleições irão decorrer num "momento de complexidade nacional".
Detenho-me, portanto e por uma razão de consciência pessoal, a pensar quais serão, de facto, as "questões europeias" que os portugueses devem debater que não se confundam com questões da política interna do país e, por mais que seja o meu esforço, confesso-me incapaz de chegar a uma conclusão que justifique esta "divisão" a que o Prof. Cavaco Silva, entre outros, alude.
Não existe sequer uma só razão para que não seja possível dissociar as duas realidades de tão estreitas que elas são e com particular acuidade no contexto actual da sociedade portuguesa mas, bem pelo contrário, quanto mais me debruço sobre o assunto mais sou forçado a concluir que nunca como agora as "questões europeias" são as verdadeiras "questões nacionais".
Já nem me refiro ao facto de Portugal ter "libertado" desde o inicio da integração europeia uma parte substancial da sua soberania junto das instituições Europeias, desde logo ao prescindir da sua moeda nacional em favor de uma outra que, desde então, terá, segundo alguns, criado uma situação de insustentabilidade por parte de Portugal em acompanhar o ritmo dos países mais ricos da Europa.
Refiro-me, em particular, ao facto destas eleições europeias ocorrerem num momento em que Portugal se encontra em pleno cumprimento de um programa de resgate do qual fazem parte duas instituições europeias, ou seja, a Comissão Europeia e o Banco Central Europeu, facto que os torna objectivamente credores de Portugal.
Foram estas duas instituições (conjuntamente com o FMI) que avaliaram as contas de Portugal e definiram os termos do memorando de entendimento com o Governo de então que, de lá para cá, determinaram as tristemente famosas medidas de austeridade dos quais poucos ou nenhuns - embora em diferentes medidas e pesos - conseguiram "escapar".
Fosse só este o caso e já não seria razoável separar as "questões europeias" daquilo que se vai passando "cá dentro", mas dificilmente se poderá entender como o único e, para tal, bastará reflectir sobre a recente decisão relativa à União Bancária na base da qual passará a haver um mecanismo de supervisão dos bancos de cada Estado-Membro incluindo o processo de liquidação de instituições financeiras (algo que falhou, como é sabido, em toda a linha e do qual resultou a falência de diversos bancos), pressupondo que - supostamente - deixarão de ser os contribuintes a suportar os custos futuros dessa mesma liquidação.
Ora, neste contexto o papel do BCE tem ganho um especial relevo seja ao nível da política monetária da União, mantendo em simultâneo as taxas de juro em níveis historicamente baixos sem que daí resulte uma tendência inflacionista bem ao contrário do que o anterior responsável pelo BCE perspectivava, com as consequências que são conhecidas.
Mais importante ainda, o BCE tem optado por uma forte intervenção na aquisição de activos obrigacionistas - leia-se de dívida soberana - o que, em termos práticos, tem um duplo efeito: limita por um lado a apetência especulativa dos "mercados" ou, conforme usualmente se refere sem que se saiba exactamente o que significa, a volatilidade dos ditos mercados e, por outro, acaba por funcionar com um "escudo" invisível que favorece a percepção a esses mesmos mercados relativamente à real situação da divida soberana de cada Estado, na medida em que "transmite" uma "mensagem" de confiança à luz da qual, supostamente, quem se dispõe a adquirir parcelas significativas da divida de Estados com endividamento excessivo é porque, em principio, tem garantias de cumprimento futuro por parte desses mesmos Estados.
Poderia, sem sombra de dúvida, adicionar muitos e diversos motivos pelos quais não é possível simplesmente separar as "questões europeias" que deverão ser "discutidas" no período eleitoral relativamente às suas homologas "questões nacionais". Por isso mesmo a questão mantém-se: qual o motivo pelo qual alguém pretenderá fazer essa separação?
De acordo com a minha percepção a resposta a essa questão é relativamente simples. O que se pretende é que precisamente não se fale durante o período que se avizinha das "questões nacionais" não cheguem as pessoas à conclusão que essas mesmas questões são, em grande parte, o resultado da inexistência durante largos anos de verdadeiras "questões europeias". Assim vão as cousas.