domingo, 28 de janeiro de 2018

A elegia da hipocrisia

Nos idos anos 40/50 do século passado vigorou nos Estados Unidos a tristemente célebre Lista Negra de Hollywood onde constavam os nomes de actores, cineastas, guionistas, etc, apenas pelo pretenso motivo de pertencerem ao partido comunista ou defender "ideias de esquerda" o que, para qualquer ignorante vale mais ou menos o mesmo e, dessa forma, vedar o acesso ao emprego a quem visse o seu nome inscrito em tal lista.

Durante esse período, conhecido por período do Macartismo qualquer pessoa estava sujeita a uma acusação de subversão ou mesmo de traição na maior parte das vezes tendo por único "sustento" denuncias anónimas, baseadas quase sempre em evidências inconclusivas ou questionáveis, cujo resultado foi quase sempre a destruição de carreiras e de vidas.

Em causa estava nessa altura o "medo" que representava o crescimento do comunismo no pós-guerra sobretudo na Europa de Leste, em África e América do Sul e a influencia que daí poderia advir para a tradicional "american way of life" americana, em si mesmo uma forma encapotada de falsos moralismos de quem se vê a si próprio como guardião do mundo.

Ora o que está por detrás de um tal movimento é apenas concebível à luz de uma moral questionável de quem para atingir determinados fins não olha a meios, incluindo a total subversão do sistema judicial, incluindo o legitimo direito à defesa, respeito pelo principio da inocência e à não inversão do ónus de prova.

Poder-se-ia então pensar que os medos de então deixaram de ser os problemas de hoje e que a América virou definitivamente a página.

Aparentemente não, e os exemplos são constantes e alguns deles bem recentes, senão veja-se:

Hipocrisia #1 - O tratamento dos americanos em relação às minorias

A moral americana dita que nos dias que correm é politicamente incorrecto o uso de expressões que possam ser consideradas pejorativas para qualquer raça ou credo, utilizando-se todo o tipo de referências em sua substituição para não ofender ninguém e a todos agradar. Assim "negro" passou a "African-American", "indio" passou a "Native American", "anão" passou a "short people" e por aí em diante.

Em teoria nada haveria a acrescentar a esta alteração de nomenclatura baseada no politicamente correcto não fosse o caso de ser este o mesmo país que descrimina de forma generalizada os direitos dos negros, senão veja-se e de acordo com alguns estudos:

  • Para cada US$ 6 com os brancos, os negros têm US$ 1
  • Há 20 vezes mais condenações de negros por casos parecidos
  • Os que menos têm casa própria
  • Percepção de tratamento injusto pela polícia
  • Três vezes mais expulsões e suspensões escolares

Ou seja, dizem o que não fazem e fazem o que não dizem.

Hipocrisia #2 - A questão armamento

O direito ao uso e porte de armas é considerado um direito fundamental, inscrito na segunda emenda à Constituição Americana, sendo aliás preexistente a este mesmo documento.

Ora, aquilo que na sua génese representava o direito à defesa pessoal e do próprio estado foi rapidamente interiorizado como um direito inamovível de qualquer pessoa poder circular armado sem razão ou necessidade para tal e constituir verdadeiros arsenais em sua casa, como se a noção de direito a dispor de uma arma fosse indiferente a ser uma pequena pistola ou uma metralhadora de guerra.

A realidade é que à luz deste principio todos os anos morrem nos EUA mais pessoas em resultado de tiroteios com armas de fogo do que em todos os cenários de guerra onde os americanos se encontram presentes.

Existem hoje cerca de 270 milhões de armas nas mãos de civis nos EUA que só em 2016 representaram os seguintes números igualmente impressionantes:

  • 11004 pessoas mortas por armas de fogo;
  • 5500 suicidios
  • 71 mortos em atentados
Ou seja, graças a uma emenda com um contexto histórico preciso que remonta ao século 17 pode-se facilmente concluir que o direito à posse de armas é amplamente superior ao direito à vida, direito fundamental que qualquer Estado deveria defender em primeiro lugar.

Hipocrisia #3 - O assédio sexual


Aparentemente são agora as próprios vitimas do passado os acusadores do presente, ou seja, a industria de Hollywood. 

Quem quiser colocar as mãos no fogo pela forma como ao longo de muitos anos esta industria se movimentou em termos das relações promiscuas entre os diferentes "interpretes" deste filme para além do filme poderá certamente fazê-lo mas, creio, correrá o risco de se queimar à grande.

Não está em causa desculpar ou relativizar comportamentos absolutamente condenáveis por parte dessas mesmas pessoas, está apenas em causa questionar o seguinte:

  • Quantos sabiam do que se passava e nada fizeram ao longo de décadas provavelmente por serem eles/elas próprias beneficiárias desse silêncio?
  • Quem pode interpretar o que seja efectivamente uma situação de assédio sexual?
Nada disso interessa actualmente. Basta alguém levantar-se e apontar o dedo a alguém e essa pessoa passa instantaneamente a condenada. Como nos filmes, de herói a vilão. Sem contraditório, sem presunção de inocência, nada.

Isto tudo num país em que o seu actual Presidente (então candidato) é apanhado a gabar-se "alegremente" sobre a forma como usava a sua fama para "try and “fuck” women and groping them without waiting for their consent." (dispensa-se uma tradução). 

O Macartismo do século XXI. A lista negra transformada em caça às bruxas.
 

Alguns poderão no "Uncle Sam" a personificação dos EUA como alguém que apela aos mais profundos sentimentos nacionais, nomeadamente no que se refere ao chamamento para a guerra que anualmente movimenta milhares de americanos, alguns dos quais regressam "numa caixa de pinho" como diria Zeca Afonso. Pessoalmente cada vez mais acho que aquele dedo apontando em riste muito mais do que um chamamento é sobretudo um dedo acusador.