Uma das mais fortes manifestações de um sentimento de revolta contra
qualquer regime de natureza ditatorial é aquele que se expressa através da
música.
Dizendo de outra forma, são as letras contidas em cada canção e o
significado por detrás de cada uma dessas letras que confere a aura de um
movimento a que se convencionou chamar de música de “intervenção”.
Nesse sentido, o período pós 25 de Abril de 1974 foi, reconhecidamente, fértil neste capítulo, promovendo a ascensão de um conjunto de cantores até aí
desconhecidos ou cujas carreiras não se encontravam necessariamente “alinhadas”
com o espírito revolucionário.
Mas consagrou igualmente um núcleo de artistas que haviam construído todo o
seu percurso precisamente utilizando como linha de rumo um pendor fortemente
contestatário, ainda que nem sempre essa vertente fosse absolutamente evidente
numa primeira leitura da letra das suas músicas, forma subtil de contornar um regime
cujos censores raramente deixavam escapar ao seu “famoso” traço azul os
“desvios” ao alinhamento compulsório a esse mesmo regime.
Que palavra era afinal esta que tanto parecia incomodar os líderes do
anterior regime mas que, por mera analogia, sempre pareceu causar um sério
“transtorno” junto de qualquer regime totalitário?
Essa palavra é, nem mais nem menos, o registo intemporal dos versos e da
prosa de alguns dos principais vultos da literatura portuguesa, cuja escrita
assumia dessa forma uma “visibilidade” e uma contextualização que em muitos
casos se situaria longe da perspectiva inicial dos seus autores.
Desta forma cumpriam-se dois desígnios, ou seja, um de alcance imediato que
passaria por transmitir o sentimento do despertar das consciências a meias com
um espírito de revolta, e um segundo alcance, menos evidente, de renovar a
nossa “leitura” sobre a obra de autores tão díspares e distantes temporalmente,
vagueando entre Luís Vaz de Camões, Pessoa, Natália Correia ou Manuel Alegre,
entre muitos outros.
Esta não é, aliás, uma característica portuguesa se assim se pode chamar,
uma vez que a música sempre foi um pouco por todo o lado o “veículo” de
transmissão de uma mensagem muito própria em momentos socialmente conturbados
ou de forte repressão, facto que está intimamente ligado à natureza subliminar
dos respectivos textos, impróprios para mentes de reduzida compreensão e
inteligência.
Não será, portanto, de estranhar que na alvorada do dia 25 de Abril o mote
para o que haveria de vir fosse dado ao som de duas músicas que, nesse mesmo
dia, ganharam o estatuto da intemporalidade, ficando para sempre os próprios
intérpretes ligados a este momento.
Dificilmente hoje em dia alguém questionará a razão pela qual foi essa a
via escolhida e não qualquer outra forma de transmissão de uma mensagem que,
aparentemente, seria suficientemente simples e entendível para “caber” numa
letra de música.
É precisamente a mesma razão pela qual hoje em dia a música se encontra
sempre presente em movimentos de contestação social, ou seja, é a expressão de
um estado de alma que acompanha o ser humano desde os seus primórdios,
transversal a qualquer civilização, e ao mesmo tempo uma arma tão forte que
consegue derrubar regimes apenas ao som de uma simples nota. Assim vão as
cousas.