domingo, 17 de maio de 2020

Diários de uma pandemia - 9ª semana

Hoje é um dia especial. É o dia dos meus anos. Hoje, se tudo estivesse normal, estaria a celebrar o dia com a família mais próxima, a erguermos juntos um copo de vinho, a cantar desordenadamente os parabéns. Porém, hoje é um dia normal num contexto anormal e adaptar as circunstâncias aos factos que nos transcendem é apenas mais uma etapa num processo cujo fim preciso não se conhece, mas do qual nos vão abrindo portas de esperança, baptizadas de desconfinamento, revistas a cada 15 dias e que, face aos últimos números, parece fazer crescer alguma esperança de dias melhores, que passarão a ser a nova rotina se cada um fizer a sua parte e cumprir as regras para as quais, como cidadãos, temos vindo a ser recrutados desde que foi decretado o estado de emergência.

As muitas mensagens e telefonemas ajudam a passar o dia o melhor possível e se as prendas quase todas se encontra, por força das circunstâncias, em trânsito nos correios pelo menos o bom tempo fez questão de se fazer notar, possibilitando um repasto no jardim com um fondue "à moda antiga", num dia que havia começado com uma sala inteiramente decorada com balões verdes e brancos (nada por acaso) e dizeres escritos pela C. e pela X., daquelas que um pai/marido tem de se "equilibrar" para não "ir abaixo" ao mesmo tempo que a nossa mente vai desejando que o tempo, este tempo, fique suspenso e se repita todos os dias. Ao J. couberam as honras do gelado que se seguiu ao repasto.

Este dia será também aquele que corresponderá, espero, ao ultimo diário (semanal) na medida em que formalmente fomos "convocados" a regressar à normalidade laboral, mesmo que antecipadamente ao termo do regime de obrigatoriedade de teletrabalho, e por isso mesmo se estes escritos começaram como se suspendeu o trabalho presencial terminarão agora com o seu retorno, não porque a pandemia tenha cessado ou alguém decretado o seu fim, mas porque o dever assim o determina, na esperança que o optimismo não venha uma vez mais a dar lugar ao realismo, e tenhamos de regressar "à base" de onde, porventura, estaremos a sair prematuramente.

Para trás, embora não totalmente, ficam 9 semanas de confinamento forçado, que permitiram perceber que é possível conciliar o trabalho com a qualidade de vida, responder a e-mail ao mesmo tempo que se olham para os pássaros a comer as migalhas de pão ali deixadas propositadamente, ganhando eles próprios um à-vontade típico de quem percebeu duas coisas: que ali há comida para eles e que ali ninguém lhes fará mal, nem os gatos que todos os dias nos visitam, ou simplesmente não ter de fazer horas semanais de trânsito que desgastam, tiram saúde e sobretudo nos tiram tempo uns com os outros ou tempo para fazer o que mais gostamos, nem que seja dar uma corridinha ao fim da tarde, tantas vezes adiada por cansaço acumulado.

Mas também fica claro que a produtividade não é um conceito diretamente relacionado com a presença física no escritório. Muitas empresas já o tinham percebido e espero que muita outras o tenham a ficado a perceber. A produtividade é um factor que está ligado à responsabilidade, à competência e à consciência individual. E essa não varia em função da presença num escritório. Mais do que nunca vimo-nos na contingência de prestar um serviço aos Clientes quando tudo parecia desabar. Estreitámos relações profissionais que se tornaram um pouco mais pessoais. Aumentámos a relação de confiança em muitos casos e, sobretudo, em caso algum essa confiança foi quebrada.

Percebemos melhor do que nunca o valor da proximidade daqueles que mais gostamos, fazendo jus à certeza de que só podemos ter saudades daquilo que já se teve antes.

 Haveremos de nos reencontrar, da forma possível, na certeza que quando as pessoas gostam umas das outras não é a presença física, tal como as não idas ao escritório, que nos torna mais distantes. Assim as pessoas o queiram.

E porque de despedidas se trata nada melhor do que fazer uma breve deslocação à praia para ao longe e cumprindo as regras impostas, vermos o mar, essa imagem de horizonte distante e de beleza constante, que nos permite - espera-se - olhar para o futuro com optimismo, antecipar os reencontros, retomar a normalidade.

Neste dia 17 de Maio, dia do meu aniversário, haviam em Portugal 29036 casos confirmados e 1218 óbitos.


domingo, 10 de maio de 2020

Diários de uma pandemia - 8ª semana

A nova semana "prometia" novidades daquelas pelas quais as pessoas começam a tornar cada vez mais visíveis, nomeadamente a necessidade de sair do isolamento forçado e a retoma de alguma normalidade económica, ainda que nesse particular Portugal, talvez fazendo jus aos nossos seculares brandos costumes, nunca tenha sido um verdadeiro exemplo de modelo rigoroso de confinamento ao mesmo tempo que demonstrou ser um bom exemplo de cumprimento das regras impostas, talvez ainda resquícios de uma sociedade que durante quase 50 anos se "habituou" a cumprir ordens sem as questionar.

Levantado o estado de emergência passou-se ao estado de calamidade, típico tema para uma discussão sobre os limites legais da nova realidade, típico tema para discussão por parte daqueles que parecem ser especialistas em tudo e em nada, opinadores profissionais cá do burgo, legisladores de ocasião, a que as redes sociais e alguns orgãos de comunicação tratam de amplificar, como se de verdades absolutas se tratasse, logo num tema cujas variáveis ninguém parece dominar com exatidão.

Mas houve mudanças a vários níveis. Mais pessoas nas ruas, mais carros, algum negócio reaberto, tudo (ou quase) tudo cumprindo fielmente as indicações decorrentes do estado de calamidade ou então o reflexo do velho ditado de que o "gato escaldado de agua fria tem medo", ou seja, que volte tudo ao ponto anterior se o regresso à "normalidade" conduzir à anormalidade dos últimos dois meses, sendo difícil de prever se de um novo retrocesso alguma coisa restará para reabrir mais tarde.

Há por isso mesmo um apelo constante à consciência cívica, conceito genérico, que muitos tratam de ignorar e outros de interpretar de acordo com a conveniência do momento, tomando por certo que uma decisão de ir à praia ou passear numa qualquer marginal é o resultado de um pensamento único e que mais ninguém pensará o mesmo até ao momento em que se percebe que uma e outra estão cheios de iluminados.

O uso de máscaras passou a fazer parte do quotidiano, suprema ironia para quem sempre se "habituou" a olhar com ar de gozo para os cidadãos do extremo oriente que há muito implementaram esse uso, simplesmente não por obrigação mas por dever cívico.

Também na empresa as coisas mudaram, não com a convicção que se anunciava dias antes e posteriormente abandonada quando se conheceu que ao estado de calamidade correspondia também a obrigatoriedade de obrigatoriedade do teletrabalho, facto que gerou uma reunião de trabalho na segunda-feira, quase dois meses após a decisão forçada de "abandono" do posto de trabalho. Talvez por isso mesmo e para nos lembrarmos que ao teletrabalho correspondem diversos aspectos favoráveis, fomos brindados no regresso com um acidente na ponte e 3 horas de espera, algo que em bom rigor nem nos dias "normais" de trabalho sucede.

A esta reunião seguiu-se uma reprogramação das presenças na empresas e por isso mesmo lá estive de plantão durante a manhã nos dois dias seguintes, sem a certeza absoluta de por estar ali me sentiria mais produtivo do que fazendo precisamente o mesmo em casa, uma vez que também ali o distanciamento social ou dito de outra forma, os contactos com os colegas - a génese do trabalho em ambiente de escritório - é escasso e mesmo evitado.

Por casa também houve mudanças desde logo colocaram-se "mãos à obra" para limpar o sótão/escritório nomeadamente os muitos livros acumulados e o pó que tanto gosta de lhes fazer companhia. Desafiado para isso mesmo o J. iniciou a árdua tarefa de catalogar todos os livros.

Em tudo mais o resto foi um pouco mais da "nova rotina" a que se convencionou chamar de "nova normalidade", esperando sobretudo que na avaliação quinzenal o período de hibernação do vírus não venha a desmentir as boas intenções de Presidência e Governo. Porque de nada se aproveita de sermos pessimistas então que se concentre o optimismo no esforço para que tudo corra bem e sobretudo para que no próximo mês possamos gozar as férias agendadas antes da pandemia, espera-se que fora de casa.

Neste dia 10 de Maio haviam em Portugal 27581 casos confirmados e 1135 óbitos.



domingo, 3 de maio de 2020

Diários de uma pandemia - 7ª semana

A nova semana de confinamento "prometia" novidades lá mais para o seu final havendo por essa altura a perspectiva de renovação (ou não) do estado de emergência com tudo o que isso implica em termos de limitações a determinadas liberdades que julgávamos todos por inquestionáveis mas que bem vistas as coisas não decorrem tanto de uma decisão presidencial ratificada pelo Parlamento mas de um dever geral de recolhimento a que apenas alguns resistem a cumprir, não que isso seja estranho posto que em qualquer momento haverá sempre aqueles que entendem haver uma lei geral e uma ausência de lei para eles próprios.

E é sobre liberdade que se deve falar no preciso momento que coincide com duas datas marcantes na vida democrática portuguesa: o 25 de Abril e o 1º de Maio. Em ambos os casos a realização de tais eventos foi desde cedo questionada por alguns, aplaudida por outros, mas admito que ignorada por ninguém. Se ambas as manifestações têm vindo a perder relevância mas não o significado é caso para dizer que este ano o significado superou porventura a relevância dos habituais discursos cada vez mais afastados do que se pretende celebrar e mais um prolongamento da retórica habitual em cada dia de sessão parlamentar.

Não me recordo de tantas manifestações espontâneas de quem entendeu celebrar à sua maneira sobretudo o 25 de Abril, cantando o "Grândola" à janela ou em colunas em alto e bom som, festejando como há muito não se via nas redes sociais. Talvez mais do que nunca as pessoas percebam o valor de sermos responsáveis pelos nossos destinos ou o significado de serem outros a dizer quais as nossas liberdades. Se calhar sempre souberam. Porventura estavam esquecidos. Se assim foi o vírus afinal nem tudo destruiu.

A imagem dessa liberdade tem sido expressa nos animais que à falta de humanos resolver aventurar-se num espaço quase sempre hostil mas que tendo sido deles está mais do que visto um dia voltará a ser deles, assim deixemos nós de os afastar e dar cabo do ambiente. Por aqui essa imagem surge nos gatos que sempre nos visitaram mas aos quais agora conseguimos ver a todo o momento e os pássaros, de tão distintos piares, que quase sempre se confundem com o barulho dos carros mas que agora cantam sem interrupções e se "atrevem" a vir comer umas migalhas de pão deixadas propositadamente sobre a mesa do jardim, sempre atentos a tudo, aos humanos e aos ditos gatos.

A semana anunciava também a perspectiva de um retorno controlado à empresa, numa espécie de regresso à normalidade ou mais propriamente à dita nova normalidade, num regime de escalas que se haveria de consolidar após o anuncio das medidas pós-estado de emergência por parte do Governo quinta-feira e que prevendo um desconfinamento anunciaram também a manutenção do regime obrigatório de tele-trabalho, deitando por terra as boas (embora tímidas) perspectivas de um abandono do posto de trabalho improvisado desde o dia 15 de Março.

Nunca como agora tantas pessoas viveram um momento de tamanha incerteza, perante a necessidade de evitar o alastramento do vírus que se encontra em queda há vários dias e a necessidade de sentir que à vida para além desse vírus que urge retomar, mas cuja duração, tal como no estado de emergência, dependerá afinal de contas de cada um de nós, com um plano que se conhece agora à cabeça alargado ou restringido a cada 15 dias.

Nas janelas vão surgindo os cartazes de um arco-íris que o sol se encarrega de tornar menos colorido e que anuncia que ficaremos todos bem. Será que vamos, ou melhor, será que somos capazes? Há 46 anos colocaram-se vários desafios e o principal seria o que fazer com a liberdade conquistada. Agora, simbolicamente, não será assim tão diferente.

Neste dia 3 de Maio, dia da mãe e inicio do estado de calamidade, haviam 25190 casos registado e 1023 óbitos.