Quem tenha estado desatento relativamente aos assuntos que abrem os títulos noticiosos ou preenchem as primeiras páginas dos jornais ou, por absurdo, tenha estado nos últimos meses a “desfrutar” de um eventual estado de hibernação ou numa qualquer cápsula criogénica e só agora tenha “acordado” poderá, porventura, achar que nada mudou em Portugal em termos governamentais.
Tal convicção deve-se ao facto de, num ápice, o foco das atenções mediáticas se ter virado uma vez mais para o anterior Primeiro-Ministro, o Eng. José Sócrates, embora tal não se verifique necessariamente pelos melhores motivos.
De facto, o seu nome passou a ser ventilado não por qualquer intervenção que o próprio tenha feito - onde quer que ele se encontre - ou por qualquer novo facto agora conhecido relativo ao período em que liderou os destinos do país.
Bem pelo contrário, os motivos pelos quais as luzes de tão incómoda ribalta se reacenderam foram, em concreto, precisamente as mesmas que o “perseguiram” durante o referido período.
O primeiro de tal motivo corresponde ao “reacendimento” de alguns dos tópicos de natureza judicial que como é típico no nosso imaginário assumem a forma de rótulos com que qualquer pessoa possa de imediato “fazer a ponte” com o assunto a que diz respeito.
Assim sendo temos de volta os denominados processos “Face Oculta”, “Freeport” e “Universidade Independente” a fazer das delícias de uma certa deriva sensacionalista de alguns órgãos de comunicação social que parecem querer ser os intervenientes de uma forma de julgamento paralelo àquele que decorre dentro da sala de audiências.
A questão que se coloca é que, estranhe-se ou não, o anterior Primeiro-Ministro não figura em qualquer dos casos investido em intérprete dos mesmos ao abrigo das figuras processuais que quase todos reconhecem, seja o de testemunha, arguido ou mesmo acusado.
Este facto resulta, do que nos é dado a conhecer, pela circunstância de ter sido afastado de tais “trabalhos” por quem tinha a incumbência de dirigir os respectivos processos e esse pequeno mas relevante facto faz toda a diferença (ou deveria fazer) quando nos predispomos a efectuar a respectiva análise.
Ora se noutras paragens se fala – justamente – da judicialização da política face ao peso relativo dos juízes na acção política, em Portugal parece passar-se precisamente o oposto, isto é, a omissão de qualquer acusação ou condenação revela-se normalmente um fardo consideravelmente superior para o visado apenas pelo facto de não poder “defender-se” no mesmo plano dos demais intervenientes activos no processo judicial e pelo facto de aos olhos do cidadão comum dificilmente poder escapar à convicção que essa ausência se deve unicamente a motivos relacionados com pressões políticas, facilmente confundíveis com esquemas de corrupção.
O segundo motivo é mais recente embora remeta para questões antigas e surge em forma de prefácio de um livro do Prof. Cavaco Silva a propósito de um dos seus “roteiros” para a juventude.
Neste particular a actuação do actual Presidente da República revela-se um verdadeiro “case study” de um posicionamento particular que é simultaneamente uma tentativa recorrente de se colocar à margem da situação actual do país nem que para isso tenha de reescrever a sua própria intervenção ao longo dos anos ou, como se verifica no caso vertente, dar nota ao país que foi alvo de uma deslealdade sem precedentes por parte do então Primeiro-Ministro da qual resultou a impossibilidade prática de exercer a sua “magistratura de influência” que aparentemente permitiria conduzir o país a uma situação diferente daquela que actualmente se verifica.
Não obstante este entendimento, cujo “timing” é no mínimo tão equivoco como o silêncio com que “brindou” os portugueses até agora relativamente a este seu “sentimento”, parece que tamanha traição não era em si mesmo motivo para considerar o comprometimento do regular funcionamento das instituições.
Ora, por muito menos, o Dr. Jorge Sampaio havia alguns anos antes usado das suas prerrogativas presidenciais para demitir o governo do Dr. Santana Lopes pelo que na base da decisão de manter em funções um Governo cujos membros são, na sua própria avaliação, desleais só é justificável pela intenção deliberada de não surgir associado à queda de um Governo deixando essa “tarefa” ao Parlamento, o que se veio a verificar.
O Prof. Cavaco pode agora dizer-nos para “lermos” correctamente o dito prefácio, mas a leitura se calhar só pode ser uma e essa é ela própria de uma profunda deslealdade de não ter revelado ao país in illo tempore o seu entendimento sobre o comportamento do Governo e sobretudo actuado em conformidade com os seus poderes constitucionais.
O terceiro e último motivo é o recrudescimento do recurso por parte dos membros do Governo à justificação do presente com o passado contrariando a espécie de voto a que os próprios se haviam proposto e que, todos sabíamos, mais tarde ou mais cedo seria quebrado.
Das duas uma, ou tal resulta de uma necessidade de começar a justificar a incapacidade do actual Governo em inverter o ciclo recessivo em que Portugal parece afundar-se ou então é o pronunciar da necessidade de preparar o caminho para o anúncio de novas (e certamente mais duras) medidas de austeridade precisamente “à luz” da acção governativa do anterior executivo.
Curiosamente à margem de todos estes motivos (e provavelmente alguns outros) parece estar o Eng. José Sócrates em quem todos parecem “bater” com redobrada intensidade mas de quem – paradoxalmente - nada se ouve, nem no sentido da sua própria defesa nem numa eventual justificação pessoal, permitindo dessa forma a todo e qualquer um que retire desse silêncio a conclusão mais conveniente de acordo com o resultado que se pretenda obter.
Porventura estará convencido que esse silêncio é em si mesmo a melhor defesa e que a sempre conveniente auto-imposta “travessia do deserto” permitir-lhe-á abrir caminho para um regresso futuro assente no pressuposto da igualmente conveniente “memória de 15 dias” dos portugueses.
Esta será, porém, uma história de que alguém já escreveu o prefácio e mesmo o respectivo enredo, mas cujo epílogo está muito longe de estar escrito ou sequer de se saber quem o escreverá. Assim vão as cousas.