Como quase sempre sucede, é no final da "festa" que se faz o respectivo resumo, isto é, uma espécie de balanço daquilo que ficou para trás, normalmente com uma divisão relativamente simplista entre aquilo que correu bem e aquilo que correu menos bem, se quisermos relativizar a sua importância ou, não sendo esse o caso, ir logo direito ao assunto e perceber, de facto, o que correu mesmo mal.
Por isso mesmo não é de estranhar a sucessão de "resumos" sobre o resultado prático da intervenção da troika em Portugal, nomeadamente o impacto da implementação das medidas constantes do memorando que determinou as linhas essenciais da sua "estadia" em Portugal ainda que, porventura legitimamente", se vá afirmando que o dia 17 de Maio terá apenas correspondido à data formal de saída mas que, de forma mais ou menos visível, por cá andarão mais algum tempo.
Não sendo meu propósito efectuar uma tal análise, pretenderei unicamente situar-me num dos pontos certamente mais complexos desse mesmo período que será aquele que remete para o custo dos juros da dívida pública directa, suportados anualmente pelo Orçamento de Estado, e que resultam do facto extraordinário dessa mesma dívida pública se situar actualmente em cerca de 130% do PIB o que, em termos práticos configura uma subida de 56pp desde 2008, ou seja, o ano em que deflagrou a crise internacional.
Significa isto, em termos práticos, que boa parte da dose de esforço que os portugueses genericamente tiveram de suportar em consequência directa da necessidade de intervenção externa serve, não para o equilíbrio das contas públicas, mas sim para suportar o custo dos juros da dívida pública os quais, para que se perceba exactamente a que é que correspondem numa representação numérica a 7.239 mil milhões de euros só no corrente ano ou, dito de outra forma, representa um valor que é superior ao Orçamento de Estado da Saúde ou da Educação.
Ora, sobre esta questão da maior relevância surgiu há não muito tempo um movimento reconhecido por uma designação numérica correspondente ao número de subscritores do referido movimento que sinteticamente afirmava que, tal como está, a dívida pública não é simplesmente sustentável, ou seja, não é passível de ser paga no curto, médio ou longo prazo e, nesse sentido, propõe um conjunto genérico de princípios que têm como pressuposto a necessidade de reestruturação da dívida.
Esse tal manifesto foi imediatamente "alvo", como habitualmente em Portugal, de uma série de "ataques" ao seu conteúdo, transformando-o rapidamente em mais um argumento de querela politico-partidária que, no essencial, mais não fez do que afastar a discussão sobre o tema, admitindo que parte significativa daqueles que o fizeram não tenham, sequer, efectuado uma leitura do documento que, afinal de contas, não tem mais do que 3 páginas.
Não foi esse o meu caso, pois entre a opção de ser desmentido pela realidade e o de passar por ignorante, "prefiro" em qualquer dos casos a primeira opção e, por isso mesmo, não tive outro remédio que não fosse o de ler um documento que, entre os epítetos de "masoquista" e "inoportuno" ou, no pólo oposto, de documento de "bom senso", parece estranhamente (ou não) ter caído em pleno esquecimento.
Desta forma a análise que faço ao manifesto dividir-se-à em três critérios distintos que procurarei abordar de forma sucinta.
O primeiro critério será o da oportunidade, isto é, aquele que remete para o momento em que o manifesto foi tornado público e que, por coincidir com uma das ultimas avaliações da troika poderia conduzir a um entendimento de que Portugal não pretenderia simplesmente pagar a dívida.
A questão é que a noção de oportunidade não pode ser aferida por uma única parte, nomeadamente aquela a quem não interessa ser directamente questionada e, nesse sentido, não creio que a mesma possa fazer sentido, uma vez que concorde-se ou não com os princípios do manifesto a questão - a colocar-se - apenas faria sentido tendo em vista precisamente o período pós-troika.
Acresce a este facto que, numa democracia, o debate de ideias e de opiniões não está dependente do sentido de oportunidade de cada um porque é inerente a essa mesma democracia e, nunca é demais recordar, corresponde a um direito constitucionalmente garantido (vide artigo 37º), não me constando que os direitos constitucionais se encontrem suspensos, ainda que aparentemente não falte quem assim o quisesse.
O segundo critério é o da razoabilidade. É evidente que não "cai bem", nomeadamente perante qualquer credor, a perspectiva de que esse mesmo crédito possa não vir a ser pago no futuro ou que o custo acordado para esse mesmo pagamento possa ser inferior ao que seria expectável.
A questão é que nesta coisas como em quase tudo na vida, podemos ser enganados ou enganar-mo-nos a nós próprios, o que no caso vertente não significa nada mais do que algo que parece evidente a qualquer pessoa dotada de bom senso, isto é, do ponto de vista orçamental efectivamente a dívida pública só é "pagável" se, durante os próximos (largos) anos, forem criados excedentes orçamentais de tal ordem que, para que se perceba o enquadramento, nunca existiram em toda a história contemporânea de Portugal e não se prevêem futuramente em qualquer documento de estratégia orçamental conhecido ou mesmo nas perspectivas que regularmente são anunciadas, seja nos relatórios do Banco de Portugal, da OCDE, do FMI ou mesmo do próprio Governo.
Parece, pois, no mínimo razoável que se coloque a dúvida sobre a sustentabilidade da dívida pública e sobretudo a limitação ao próprio desenvolvimento do país, nomeadamente os sacrifícios que se torna necessário fazer para se pagarem os juros de um dívida que, em termos concretos, nunca mais é amortizada porque se "alimenta" a ela própria como novos juros...
O último critério que entendo dever referir é o que remete para a utilidade do documento. Para isso importa ter presente que o mesmo foi subscrito por individualidades situados entre a direita mais conservadora e a esquerda mais radical facto que, reconheçamos, não é exactamente o paradigma da politica portuguesa.
Mas não só, os seus subscritores são igualmente pessoas que de um modo geral ligados à economia, tendo alguns deles desempenhado o cargo de Ministro das Finanças ou da Economia (ou os dois) sendo pelo menos aceitável que se atribua a necessária margem de credibilidade às suas posições públicas, independentemente de maior ou menor grau de concordância com as mesmas, ao invés de imediatamente se questionar se na base do respectivo apoio ao memorando não estaria, por exemplo, um interesse próprio mais ou menos obscuro, nomeadamente a salvaguarda das suas próprias reformas.
A verdade é que a "juntar à festa" surgiram mais uma quantas personalidades, desta vez estrangeiras mas igualmente identificadas numericamente a dar o seu apoio a este manifesto, grupo este que era constituído exclusivamente por economistas (incluindo com cargos no FMI) a contestar os princípios da denominada "recessão curativa" ou da "austeridade expansionista" que, de acordo com os mesmos, são a causa e a consequência do agravamento da dívida pública e da actual crise social.
A utilidade subjacente ao manifesto e aos seus apoiantes será - ou deveria ser - o de, pelo menos contribuir para a discussão de um tema que parece gerar, por uma vez que seja, os tais consensos que alguns tanto gostam de apregoar mas que, pelos vistos, parecem menos dispostos a concretizar.
E, no entanto, a questão até pareceria "simples" e relativamente pacífica, bastando para o efeito a capacidade de perceber que na base da necessidade de auxilio externo esteve precisamente uma percepção de insustentabilidade da dívida pública do qual resultou o agravamento exponencial da capacidade de financiamento do Estado Português e que, com uma divida pública situada 56pp acima do referencial que determinou a referida necessidade, não será muito difícil imaginar que, a curto prazo, alguém volte a questionar essa mesma sustentabilidade. Assim vão as cousas.