O Domingo de Páscoa nunca teve para mim um qualquer significado especial, nomeadamente em relação àquilo que faz deste dia um dia de celebração para o mundo cristão.
Contudo, à minha mente ocorre sempre o facto deste mesmo dia coincidir - antigamente como nos dias de hoje - com um período de férias escolares que, quase sempre, eram passados em casa dos avós, pelo que a tradição de celebrar a Páscoa tem para mim um significado que não se "confunde" com a convicção que dá o mote a esta crónica.
De facto, a celebração do período Pascal era especialmente vincado nesses tempos idos da minha infância passados naquela remota aldeia do Distrito de Leiria e a solenidade do momento transformava aquele Domingo num momento em que a rotina se transformava totalmente.
Nesse dia o Sr. Prior haveria de fazer a visita à casa das pessoas e abençoar cada lar.
Num ápice tudo mudava e a informalidade típica de uma casa de aldeia transformava-se numa espécie de altar improvisado onde se aprimorava tudo aquilo que parecia quase irrelevante nos restantes dias.
Tudo parecia limpo como nunca.
As melhores roupas, aquelas que quase nunca saiam do armário e que se diria apenas os próprios se lembrariam da sua existência, pois à excepção dos momentos festivos de um casamento ou baptizado jamais tinham o uso para o qual haviam sido adquiridos, ganhavam neste dia o seu humilde esplendor.
Habituados a passar os dias num estado quase "selvagem", também a nós nos "calhava" a obrigação de vestir a roupa que tinha sido colocada na mala de viagem precisamente para aquele dia.
Os degraus da porta principal que não abria nunca excepto naquele dia e que dava para uma sala de refeições onde não me recordo igualmente de alguma vez ter comido ou jantado, era coberta com folhas de eucalipto por onde o padre da aldeia e os seus acólitos haveriam de passar.
Não obstante esta solenidade incaracterística, nada parecia forçado neste momento, mas sim parte de um hábito anterior à existência de todos aqueles que nele participavam, como se de uma herança se tratasse e que cada um dos lares estivesse "condenado" a perpetua-lo à luz de um profundo sentimento religioso que já então me parecia estranho mas que creio sempre ter compreendido.
Feita a bênção, era então o momento em que o Sr. Padre, essa figura tutelar de uma aldeia, objecto de um respeito absoluto que facilmente se confundia com o temor reverencial que define a linha entre a perdição e a salvação, dirigia umas breves palavras aos presentes, traduzindo os desejos de uma Santa Páscoa em que, quase sempre, a sua atenção acabaria por se dirigir para nós próprios, aqueles que ali se encontravam porque a interrupção da escola assim o obrigava.
Nunca soube o que responder às perguntas de circunstância que me eram dirigidas, apesar de não duvidar das respostas que era suposto dar.
A reverência prestada àquela figura vestida de branco, os paramentos, o crucifixo ou mesmo a presença de pessoas que não conhecíamos de lado algum e que agora entravam por um porta sempre fechada e onde pessoa alguma acedia, de acordo com os bons costumes, sem ser convidada, a sala na qual não podíamos brincar, as roupas que pareciam transformar qualquer Diabo num Anjo, criavam apenas o efeito do silêncio apenas interrompidas pelo "convite" às respostas por parte das restantes pessoas que, invariavelmente, redundavam num pouco convicto "sim" ou "não" como se nada mais houvesse a dizer.
No final havia uma espécie de "troca" em que meia-dúzia de amêndoas distribuídas pelo Sr. Padre dava lugar a uma singela oferta dos avós para bem das obras na igreja.
Terminado o acto que apesar de tão preparado parecia apenas demorar um tempo ínfimo, voltava tudo à "normalidade", as roupas ao armário e a porta que se voltava a encerrar, provavelmente até ao ano seguinte.
Tudo era parte de um ritual, cumprido com convicção por toda a gente ao qual, querendo ou não, nos associávamos na certeza que, nessa altura, jamais poderia imaginar que um dia mais tarde e pleno de nostalgia, ainda haveria de escrever sobre isto. Assim vão as cousas.
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