"Poder e violência são opostos;
onde um domina absolutamente, o outro está ausente.” (Hannah Arendt)
Um dia alguém me perguntou porque é que nunca escrevia
sobre futebol. Respondi quase de imediato que "não me interessava" e
que havendo tantos a fazê-lo que mais-valia poderia trazer qualquer coisa
escrita por mim sobre que tema fosse.
Desengane-se, contudo, quem
achar que a "promessa" estará na prestes da ser quebrada posto que
continua a ser um tema cuja margem de dissertação é tão manifestamente
desinteressante que, em si mesmo, não vale o esforço de tentar ser inovador
sobre o mesmo.
Mas tal não impede que de
alguma forma um tema tão recente que ainda não se sabe o tempo que durará,
tendo por protagonista principal o presidente de um grande clube de futebol,
permita uma divagação sobre a natureza do populismo e demagogia, base comum das
raízes do poder absoluto que ao invés de nascer do nada, vai crescendo aos
olhos de quem o semeou - os cidadãos - e que num dado momento se descontrola,
tornando-se numa forma autoritária de governo que prescinde desses mesmos
cidadãos ainda que fazendo crer que os representa a todo o momento.
A receita parece simples de
tantas vezes "cozinhada" e assenta em pressupostos comuns que tantas
vezes, como agora, nos obrigam a um esforço intelectual para compreender o incompreensível.
1. Os fundamentos
A base do populismo e a
demagogia assentam na esmagadora maioria das vezes em contextos sociais e políticos
de grande complexidade em que uma larga maioria da população sofre ou vem
sofrendo de uma qualquer foram de constrangimento das suas liberdades e
direitos, não por via da existência de uma ditadura no sentido mais comum de
algo imposto por um ditador, mas sim formas distintas como de liberdade
económica e perda de direitos. O desemprego ou a redução de salários ou o
aumento do custo de vida são os exemplos mais comuns, mas para que faça sentido
a "ponte" com o universo futebolístico o acumular de frustrações em
anos sucessivos normalmente associado a um muito fraco desempenho económico do
qual resulta uma quase recorrente deriva para o abismo das respetivas contas
que só um estado de permanente exceção impede de transformar em falência ou
insolvência.
2. A necessidade de culpados: O
inimigo comum
Conhecidos os fundamentos o
passo seguinte é a definição de um "inimigo" óbvio, aquele a quem não
custa apontar o dedo pelos males que, contrariamente ao ditado popular, sempre
duram e tendem a perpetuar-se se nada for feito em sentido contrário. A lógica
passa a ser o do "contra tudo e contra todos", seja o inimigo externo
seja o interno. O culpado versus as vítimas, contra o qual é preciso combater
com uma rotura face ao passado, sem que nunca se explique o verdadeiro custo
dessa rotura. Não interessa. Sabemos quem são, sabemos ao que nos conduziram,
importa assegurar o seu afastamento para sempre. A manipulação atinge o seu
auge.
3. A consulta popular
Uma das maiores falácias dos
tempos modernos, é a noção de que grande parte dos regimes ditatoriais foi
inicialmente legitimada pelo voto. Esta aparente contradição serviu e ainda
serve como presuntiva justificação para o que se seguiu ao escrutínio popular,
ignorando que o voto em si mesmo não é em si mesmo a fator de legitimação do
que quer que seja, mas a antes a liberdade de voto. De nada serve do ponto de
vista democrático uma consulta popular em que a oposição foi totalmente
afastada ou aparece como meramente simbólica, senão mesmo
"autorizada", para alimentar a farsa que foi sendo construída, qual
ilusão de pluralidade.
4. O poder absoluto: Fase 1
Ganho o poder nas urnas os
primeiros tempos de governação aparentam quase sempre uma imagem de mudança que
a todos parece agradar, com manifestações de políticas a favor do
"bem-comum" normalmente associados a alguns resultados imediatos que,
em bom rigor, ninguém poderá dizer que são consequência natural da mudança ou
algo que provavelmente aconteceria em qualquer dos cenários. Não importa. As pessoas
estão agora convencidas que a mudança resultou e há-de continuar a resultar,
ignorando que estes primeiros tempos são aqueles em que o novo poder vai
tomando conta das instituições, algo que não se faz de um dia para o outro, mas
que requer paciência para que não seja muito visível o outro "rosto"
da mudança que, afinal de contas, se queria para melhor.
5. O poder absoluto: Fase 2
Dominado o poder e as
instituições há que criar condições para que o poder se perpetue e para isso há
que dominar os focos de contestação que aqui e acolá persistem em incomodar os
novos senhores. Não interessa se têm 90% de aprovação popular, porque não
compreendem nem aceitam os outros 10% (parece familiar?). Viram-se as armas -
por vezes reais - contra os desalinhados. Tudo serve para os desmoralizar. Se
não é possível prendê-los então que se encham de processos crime, civis,
providências passando também pela sua descredibilização publica permanente, com
falsas notícias (parece familiar?), passando a ideia de que aquilo que ainda
não se conseguiu é culpa de outros e não própria quando, afinal, já nada há a
barrar o seu próprio poder e os fins pretendidos.
6. As milícias
Frustradas as tentativas de
controlo absoluto o poder entra em modo obsessivo. Julga estar a ser alvo de
ataque eminente por forças que apenas o próprio parece conhecer e, pior ainda,
muitas vezes apenas imagina, e para se defender reúne-se de uma espécie de
força de "elite" disposta a tudo para defender o muro que se foi
construindo e que ameaça tornar-se num castelo que apenas visa proteger o soberano
deixando de fora quem o elegeu. Nesta altura poderá perguntar-se: o que é que
tal tem a ver com futebol? Para que não se pense que a alusão inicial
rapidamente foi esquecida então é preciso esclarecer que, neste particular, o
"exército" mais à mão são habitualmente as claques (parece familiar?
Alcochete?).
7. O poder absoluto: Fase final
Alheado do mundo e incapaz de
controlar o seu próprio poder, a agressividade descontrolada toma a forma de
luta pela sobrevivência. Os antigos aliados viraram opositores (parece
familiar?), os apoios vão caindo, o "general" está cada vez mais
isolado e só o que resta das suas tropas, um conjunto violento, a tudo disposto
e com pouco ou nada a perder, vai alimentando o seu poder. Todos apelam a um
bom-senso que já cessou de existir (parece familiar?), a uma réstia de
capacidade de julgamento próprio que o leve a abandonar voluntariamente o
poder, enfim, o sentimento inicial de pena vai dando lugar a uma revolta
generalizada, cujos meios a ninguém aproveitam, mas normalmente com um triste
fim à vista, senão mesmo com data marcada (parece familiar?).
8. A queda
A realidade toma conta do mundo
imaginário a que o detentor do poder absoluto se arrogou. A queda é a
consequência, quase sempre de forma ultrajante ou mesmo violenta, raramente
pelo voto, essa réstia de esperança que se há-de seguir à queda do ditador.
Alguns pseudo-seguidores disparam ainda as últimas "balas" de pólvora
seca apesar de já nada haver para defender. Nos dias seguintes, qual pessoa
prestes a afogar-se, mas que insiste em manter as mãos à tona, aparecerá à
distância a insistir na mesma loucura que levou à sua queda. Aos seus inimigos,
agora basicamente quase todos, falará de ingratidão (parece familiar?), de
ressentimento, não próprio e jamais de arrependimento.
Qual é a verdadeira moral de
tudo isto?
O ponto comum entre a ascensão
de alguém ao poder e a sua queda são os principais "atores" neste
filme de argumento tantas vezes repetido: todos nós.
O poder não se esgota nestes
dois momentos de ascensão e queda. Sobre os cidadãos impende a obrigação quase
sagrada de avaliar o carácter de quem se prestam para colocar no poder. Sobre
os cidadãos recai a obrigação intransferível de controlo da forma como o poder
é exercido para que este não se torne um fardo sobre eles próprios.
As falsas promessas, os messias
de ocasião são, quase sempre, ilusões de uma realidade bem mais complexa que
esconde as verdadeiras intenções de quem julga e quer fazer crer que tem as
respostas para todos os males, sem olhar a meios para atingir os fins.
Quase sempre o que resta está
bem pior do que se encontrava inicialmente e que supostamente deveria ter sido
corrigido. E esse é o maior sinal de falência do sistema. É precisamente a
incapacidade de perceber que a mudança tem de levar a algo novo, um novo
paradigma. A certeza parece, porém, a contrária, uma espécie de "eterno
retorno" no sentido da desgraça. Os novos ventos dos EUA, Alemanha,
Itália, Holanda, Polónia, Filipinas, Venezuela, etc., ou até ao nível de um
presidente de um grande clube de futebol, são talvez o regresso ao ponto
inicial do poder absoluto: os seus fundamentos.
"Government of the people, by the people, for the people,
shall not perish from the Earth" (Abraham Lincoln)