A liberdade de expressão é uma das
consequências prácticas de qualquer estado de direito democrático e, no
essencial, atribui a cada um o direito de se expressar livremente, sem que por
tal facto possa vir a sofrer consequências desfavoráveis para si próprio.
Pessoalmente, actuo neste espaço precisamente
no pressuposto que atrás referi sabendo, contudo, que a referida liberdade não
é incondicional, não no sentido de se encontrar limitada enquanto conceito
abstracto, mas porque em termos concretos, a minha liberdade não deve colidir
com igual liberdade de outrem, condicionando-a ou limitando-a.
Dessa situação resultaria uma óbvia subversão
do princípio que lhe subjaz e, não querendo contribuir para uma tal alteração
deste paradigma, procuro não recorrer ao insulto “fácil” ou sequer ao
“lançamento” de falsos argumentos, não só pela convicção de que dessa forma seriam
facilmente rebatidos, mas igualmente pela percepção de que não é justificável
procurar “chegar” a uma determinada conclusão com base em argumentos pouco
credíveis.
Tal facto não impede que, semanalmente, emita
a minha opinião e os argumentos que a fundamentam e que os mesmos sejam –
espero sinceramente – passíveis de gerar opinião contraditória, ainda que consciente
de que o espaço que escolhi para o efeito dispõe de uma menor exposição
mediática do que outros canais.
A este respeito dediquei-me a analisar a
recorrente tendência para algumas personalidades, mais ou menos relevantes da
nossa vida pública, para emitirem opiniões de natureza pessoal rapidamente
apelidadas de “polémicas” porque, no essencial, remetem quase todas elas para
uma visão – igualmente pessoal – da contextualização social do actual período
de crise.
E fazem-no – aparentemente – sem qualquer
pudor, “atravessando” dessa forma a “fronteira” inicialmente referida em que a
opinião pessoal ofende directamente um conjunto alargado de pessoas que são
normalmente o “alvo” de tais polémicas.
A parte relativamente curiosa da questão é
que a reacção “viral” (conforme é corrente apelidar-se nos tempos que correm) é
quase sempre unanime em repúdio de tais afirmações o que, poderá significar uma
de duas coisas: ou a pessoa que as profere está errada ou todos os demais estão
enganados e, nestas coisas, cada um que escolha a versão que mais lhe agradar.
A celeridade com que, nos tempos mais
recentes, este tipo de afirmações tem vindo a ser veiculado torna, porém,
difícil uma selecção “justa” em função do respectivo grau de importância ou, no
caso vertente, da reacção que delas emergiu, pelo que a opção correcta será a
de contextualizar de forma abstracta essas mesmas afirmações.
Dessa forma e no que toca à política salarial
portuguesa retenho a afirmação (entre muitas outras) do falecido Dr. António
Borges que, do alto do seu “magnífico” salário, afirmava que “diminuir salário não é uma política é uma
urgência”. Contudo, este “princípio” não era universal já que para alguns
sectores – nomeadamente para os políticos – a resposta à questão se deveriam
ser melhor remunerados foi, sem hesitação, que “não tenho dúvida nenhuma”.
Ainda de acordo com este especialista em
frases infelizes não haveria um “regime
melhor do que a ditadura iluminada”, citando a esse propósito o exemplo de
Singapura, curiosamente um Estado onde vigora uma modelo de sociedade que não é
certamente um paradigma de democracia.
Neste mesmo aspecto da moderação salarial
veio mais recentemente a terreiro o economista João César das Neves afirmar que
o aumento da retribuição mínima seria a pior forma de “estragar a vida aos pobres”, apelidando mesmo de “criminoso” a ideia de criação de um
movimento de opinião que defenda esta medida.
Não adianta contestar que em si mesmo a
afirmação é contraditória pois não se perceberá de que forma a vida de alguém
que já é catalogável como pobre possa ter a sua vida ainda mais “estragada” pelo simples facto de lhe
aumentarem a remuneração (mínima).
Parece, alias, que este tema é demasiado
“rico” para sobre ele dissertarem poucas pessoas e, nesse aspecto, também o
Eng. Belmiro de Azevedo – um dos homens mais ricos de Portugal – afirmou em
tempos que “sem mão-de-obra barata não há
emprego”.
Não posso, por fim, deixar de referir a
expressão recente da romancista cor-de-rosa Margarida Rebelo Pinto que, entre
outras preciosidades” afirmou a sua “repulsa”
por quem – legitimamente, presume-se – se manifesta contra os cortes salariais
porque no seu entender ela própria “como
toda a gente” teve cortes e que nada mais nos resta do que “aprender a viver com menos”.
Diga-se, contudo, que a própria condição de
pobreza parece ser “fonte” de alguma verbalização menos conseguida e, também
aqui, por mais do que uma “personalidade” pública.
Veja-se o exemplo de Cristina Toscano Rico,
da família Espirito Santo (uma
das mais abastadas de Portugal) que afirmou a propósito da praia da Comporta
que ali se vivia “em estado mais puro”
para a seguir referir que tal seria como “brincar
aos pobrezinhos”.
Não obstante e em abono da verdade a própria
autora desta expressão haveria mais tarde de pedir desculpas pela infelicidade
“descontextualizada” das suas
afirmações. É coisa rara, mas fica bem.
Voltando a João César da Neves ficámos a
“saber” que a situação de pobreza será, no que toca “à maior parte dos pensionistas” uma situação mais aparente do que
real, uma vez que na sua opinião eles estarão apenas a “fingir que são pobres”. Pelo menos assim será na sua cabeça de
faz-de-conta.
Por estranho que pareça até aqueles cuja
actividade é a assistência aos mais desfavorecidos e que para tal necessitam de
forma permanente da caridade alheia parecem ter uma opinião que mesmo aqueles
que prestam essa mesma caridade terão de aprender a viver “mais pobres”, de acordo com a opinião da Dra. Isabel Jonnet do
Banco Alimentar contra a Fome, porque têm vivido “muito acima das possibilidades” e para que não restam dúvidas
ilustra a mensagem com uma imagem tão infeliz como absurda de que “se nós não temos dinheiro para comer bifes
todos os dias, então não comemos bifes todos os dias” ainda que não se
perceba bem a quem é que se estará a referir em concreto que tenha uma tal
ementa tão pouco variada sem ter dinheiro para tal.
A presente “ilustração” não ficaria completa
sem uma referência ao entendimento que alguns destes indivíduos têm sobre o
alcance da austeridade e os respectivos impactos no progressivo empobrecimento
da sociedade.
Ficou, a este propósito, tristemente célebre
a opinião do banqueiro Fernando Ulrich que o país deveria “aguentar mais austeridade” e se algo ficou para memória futura dos
portugueses foi a resposta que se seguiu à questão se os portugueses
aguentariam mais austeridade reforçando o entendimento que “ai aguenta, aguenta”.
Mas é preciso perceber o porquê desta
convicção. É que, no seu entender, “se os
sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?” referindo que a ele
próprio poderia suceder passar do estatuto de banqueiro-rico para um sem-abrigo
indistinto entre os demais afirmando que “isso
também nos pode acontecer”. Em teoria, claro.
Nada parece deter a ansia de lançar atoardas
sobre tudo e todos e por isso não é de estranhar o entendimento de João César
das Neves que o Tribunal Constitucional funciona “em termos políticos” com argumentos baseados em “princípios genéricos de igualdade e outras
coisas” ou que a etérea Margarida Rebelo Pinto se revele “profundamente triste” por assistir a
manifestações que apenas servem para “interromper
e tentar perturbar o trabalho daqueles que neste momento governam o país”.
Elucidativo.
O mais grave de tudo isto é que parecem não restar
dúvidas sobre a convicção com que este tipo de afirmações é produzida, podendo
mesmo assumir uma carácter quase religioso tomando por exemplo a convicção do
empresário Alexandre Soares dos Santos que, em 2011, afirmava que a entrada do
FMI em seria “uma bênção” para
Portugal. Ámen.
A meu ver e em
resumo, o que está por detrás de todos estes “pensamentos” não é o desejo de
uma polémica inútil mas sim a assunção despudorada de convicções pessoais que
constituem uma perigosa inversão dos valores que devem guiar uma sociedade
democrática onde, entre outros aspectos, se respeite e proteja aqueles que mais
necessitam e o direito daqueles que exigem precisamente esse respeito e
protecção. Assim vão as cousas.