domingo, 24 de novembro de 2013

O auto da estupidez


A liberdade de expressão é uma das consequências prácticas de qualquer estado de direito democrático e, no essencial, atribui a cada um o direito de se expressar livremente, sem que por tal facto possa vir a sofrer consequências desfavoráveis para si próprio.
Pessoalmente, actuo neste espaço precisamente no pressuposto que atrás referi sabendo, contudo, que a referida liberdade não é incondicional, não no sentido de se encontrar limitada enquanto conceito abstracto, mas porque em termos concretos, a minha liberdade não deve colidir com igual liberdade de outrem, condicionando-a ou limitando-a.
Dessa situação resultaria uma óbvia subversão do princípio que lhe subjaz e, não querendo contribuir para uma tal alteração deste paradigma, procuro não recorrer ao insulto “fácil” ou sequer ao “lançamento” de falsos argumentos, não só pela convicção de que dessa forma seriam facilmente rebatidos, mas igualmente pela percepção de que não é justificável procurar “chegar” a uma determinada conclusão com base em argumentos pouco credíveis.
Tal facto não impede que, semanalmente, emita a minha opinião e os argumentos que a fundamentam e que os mesmos sejam – espero sinceramente – passíveis de gerar opinião contraditória, ainda que consciente de que o espaço que escolhi para o efeito dispõe de uma menor exposição mediática do que outros canais.
A este respeito dediquei-me a analisar a recorrente tendência para algumas personalidades, mais ou menos relevantes da nossa vida pública, para emitirem opiniões de natureza pessoal rapidamente apelidadas de “polémicas” porque, no essencial, remetem quase todas elas para uma visão – igualmente pessoal – da contextualização social do actual período de crise.
E fazem-no – aparentemente – sem qualquer pudor, “atravessando” dessa forma a “fronteira” inicialmente referida em que a opinião pessoal ofende directamente um conjunto alargado de pessoas que são normalmente o “alvo” de tais polémicas.
A parte relativamente curiosa da questão é que a reacção “viral” (conforme é corrente apelidar-se nos tempos que correm) é quase sempre unanime em repúdio de tais afirmações o que, poderá significar uma de duas coisas: ou a pessoa que as profere está errada ou todos os demais estão enganados e, nestas coisas, cada um que escolha a versão que mais lhe agradar.
A celeridade com que, nos tempos mais recentes, este tipo de afirmações tem vindo a ser veiculado torna, porém, difícil uma selecção “justa” em função do respectivo grau de importância ou, no caso vertente, da reacção que delas emergiu, pelo que a opção correcta será a de contextualizar de forma abstracta essas mesmas afirmações.
Dessa forma e no que toca à política salarial portuguesa retenho a afirmação (entre muitas outras) do falecido Dr. António Borges que, do alto do seu “magnífico” salário, afirmava que “diminuir salário não é uma política é uma urgência”. Contudo, este “princípio” não era universal já que para alguns sectores – nomeadamente para os políticos – a resposta à questão se deveriam ser melhor remunerados foi, sem hesitação, que “não tenho dúvida nenhuma”.
Ainda de acordo com este especialista em frases infelizes não haveria um “regime melhor do que a ditadura iluminada”, citando a esse propósito o exemplo de Singapura, curiosamente um Estado onde vigora uma modelo de sociedade que não é certamente um paradigma de democracia.
Neste mesmo aspecto da moderação salarial veio mais recentemente a terreiro o economista João César das Neves afirmar que o aumento da retribuição mínima seria a pior forma de “estragar a vida aos pobres”, apelidando mesmo de “criminoso” a ideia de criação de um movimento de opinião que defenda esta medida.
Não adianta contestar que em si mesmo a afirmação é contraditória pois não se perceberá de que forma a vida de alguém que já é catalogável como pobre possa ter a sua vida ainda mais “estragada” pelo simples facto de lhe aumentarem a remuneração (mínima).
Parece, alias, que este tema é demasiado “rico” para sobre ele dissertarem poucas pessoas e, nesse aspecto, também o Eng. Belmiro de Azevedo – um dos homens mais ricos de Portugal – afirmou em tempos que “sem mão-de-obra barata não há emprego”.
Não posso, por fim, deixar de referir a expressão recente da romancista cor-de-rosa Margarida Rebelo Pinto que, entre outras preciosidades” afirmou a sua “repulsa” por quem – legitimamente, presume-se – se manifesta contra os cortes salariais porque no seu entender ela própria “como toda a gente” teve cortes e que nada mais nos resta do que “aprender a viver com menos”.
Diga-se, contudo, que a própria condição de pobreza parece ser “fonte” de alguma verbalização menos conseguida e, também aqui, por mais do que uma “personalidade” pública.
Veja-se o exemplo de Cristina Toscano Rico, da família Espirito Santo (uma das mais abastadas de Portugal) que afirmou a propósito da praia da Comporta que ali se vivia “em estado mais puro” para a seguir referir que tal seria como “brincar aos pobrezinhos”.
Não obstante e em abono da verdade a própria autora desta expressão haveria mais tarde de pedir desculpas pela infelicidade “descontextualizada” das suas afirmações. É coisa rara, mas fica bem.
Voltando a João César da Neves ficámos a “saber” que a situação de pobreza será, no que toca “à maior parte dos pensionistas” uma situação mais aparente do que real, uma vez que na sua opinião eles estarão apenas a “fingir que são pobres”. Pelo menos assim será na sua cabeça de faz-de-conta.
Por estranho que pareça até aqueles cuja actividade é a assistência aos mais desfavorecidos e que para tal necessitam de forma permanente da caridade alheia parecem ter uma opinião que mesmo aqueles que prestam essa mesma caridade terão de aprender a viver “mais pobres”, de acordo com a opinião da Dra. Isabel Jonnet do Banco Alimentar contra a Fome, porque têm vivido “muito acima das possibilidades” e para que não restam dúvidas ilustra a mensagem com uma imagem tão infeliz como absurda de que “se nós não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, então não comemos bifes todos os dias” ainda que não se perceba bem a quem é que se estará a referir em concreto que tenha uma tal ementa tão pouco variada sem ter dinheiro para tal.
A presente “ilustração” não ficaria completa sem uma referência ao entendimento que alguns destes indivíduos têm sobre o alcance da austeridade e os respectivos impactos no progressivo empobrecimento da sociedade.
Ficou, a este propósito, tristemente célebre a opinião do banqueiro Fernando Ulrich que o país deveria “aguentar mais austeridade” e se algo ficou para memória futura dos portugueses foi a resposta que se seguiu à questão se os portugueses aguentariam mais austeridade reforçando o entendimento que “ai aguenta, aguenta”.
Mas é preciso perceber o porquê desta convicção. É que, no seu entender, “se os sem-abrigo aguentam porque é que nós não aguentamos?” referindo que a ele próprio poderia suceder passar do estatuto de banqueiro-rico para um sem-abrigo indistinto entre os demais afirmando que “isso também nos pode acontecer”. Em teoria, claro.
Nada parece deter a ansia de lançar atoardas sobre tudo e todos e por isso não é de estranhar o entendimento de João César das Neves que o Tribunal Constitucional funciona “em termos políticos” com argumentos baseados em “princípios genéricos de igualdade e outras coisas” ou que a etérea Margarida Rebelo Pinto se revele “profundamente triste” por assistir a manifestações que apenas servem para “interromper e tentar perturbar o trabalho daqueles que neste momento governam o país”. Elucidativo.
O mais grave de tudo isto é que parecem não restar dúvidas sobre a convicção com que este tipo de afirmações é produzida, podendo mesmo assumir uma carácter quase religioso tomando por exemplo a convicção do empresário Alexandre Soares dos Santos que, em 2011, afirmava que a entrada do FMI em seria “uma bênção” para Portugal. Ámen.
A meu ver e em resumo, o que está por detrás de todos estes “pensamentos” não é o desejo de uma polémica inútil mas sim a assunção despudorada de convicções pessoais que constituem uma perigosa inversão dos valores que devem guiar uma sociedade democrática onde, entre outros aspectos, se respeite e proteja aqueles que mais necessitam e o direito daqueles que exigem precisamente esse respeito e protecção. Assim vão as cousas.

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