domingo, 18 de março de 2018

Era uma vez uma casa

Não era uma casa muito engraçada. Tinha teto, nada faltava.

Era a casa dos avós situada bem ao fundo da rua onde terminavam as casas e começava o campo através de uma estrada ladeada de poços fundos, para os quais inevitavelmente se olhava à procura de sapos que espreitavam com os olhos fora de água aos quais se apontavam as pedras que se lhes atiravam.

Mas a casa ao fim da rua tinha à entrada um tanque de pedra daqueles nos quais a roupa era lavada e esfregada à mão, onde em tempos o proprio corpo cabia dentro nos jogos das escondidas. Seguia-se um caminho em direcção ao pateo ladeado de árvores de fruto de todas as espécies onde também nas férias se colocavam as sementes de cabaças ou tremoços, de modo a que a colheita pudesse ser feita em tempo útil antes do fim das férias.

No páteo, com o chão coberto de caruma que rapidamente desaparecia por baixo da comida espalhada ou das fezes dos animais que curiosamente parecia não cheirar mal, havia de tudo, galinhas, um galo porque numa capoeira não cabem dois, coelhos, muitos, fazendo juz à sua caracteristica reprodutora, uma ou outra galinha coquicha, todos eles passeando pelo páteo como prisioneiros incoscientes do destino a que todos eles estavam destinados, para durante a noite ficarem resguardados na capoeira ou coelhal.

Era aqui que a magia se fazia, com a recolha diária de ovos frescos anunciados préviamente pelo cacarejar das galinhas, colocando-se a mão no local ainda quente fazendo as contas ao número de ovos naquele dia. Mas também havia os que se destinavam à criação, com os dias contados pela Avó sabia-se sempre quando haveriam de nascer os pintainhos que inocentemente se deixavam agarrar, fazendo votos de que nunca crescessem.

Ao lado, na coelheira, eram as pequenas crias que nos enfeitiçavam, cuidadosamente nascidas no meio de pelo da sua própria progenitora por vezes nem se viam sem colocar diretamente as mãos sob o olhar atento da mãe coelha, até que uns dias mais tarde começavam a sair pelos seus meios para fora da toca.

Neste mundo não há espaço para a nostalgia, estes animais tinham destino certo, com faca ao pescoço ou murro na nuca, não se lhes podia dar nomes nem afeiçoar como se de animais de estimação se tratassem. Sabíamos o que a natureza lhes destinava. Outros nasceriam a seguir.

Mas no páteo havia mais. Ocasionalmente havia vacas, não mais de duas ou talvez três, o espaço não dava para mais. Serviam para dar leite e, um dia mais tarde, bifes ou ainda fazer dinheiro com uma venda. Tirar leite a uma vaca não é para todos, é preciso uma técnica que não se aprende nos livros, nem a prática imediata a consegue ensinar. É preciso um certo jeito que as palavras escritas não conseguem definir.

Quando não havia vacas, haviam cabras, ovelhas. Porcos não me lembro, talvez tenham existido por lá também. Bonito mesmo era quando as cabras e ovelhas pariam e podiamos agarrar as suas crias ao colo, perante a evidente impaciência do animal. Mas por ali não há sentimento que perdure, sabiamos do destino que lhes esperava. É como ganhar uma carapaça para saber lidar com a perda, nunca nos habituamos, mas sabemos que um dia chegará.

O último "inquilino" do páteo era o residente habitual, o burro. O trabalhador incansável a quem o Criador dedicou o 6º dia juntamente com todas as criaturas que vivem em terra firme, mas não tendo cuidado de distribuir equitativamente os esforços entre eles, talvez já necessitado do descanso que viria apenas no dia seguinte, calhou a sorte ao burro de além do nome trabalhar mais do que os seus parentes equídeos próximos.

Muito trabalhavam estes animais. Fosse ao sol, à chuva ou qualquer outra condição atmosférica o seu dia era passado a carregar, fustigado por moscas a que a cauda não conseguia acudir, insistindo na teimosia que o caracterizava quase sempre "premiada" com violência inusitada do Avô de que nos riamos nessa altura mas que, bem vistas as coisas, não é mais do que o reflexo entre um ser irracional e outro que, quando quer, parece perder toda a racionalidade.

O sossego do guerreiro só chegava ao fim do dia. Descanso merecido. Amanhã há mais.

E o dia começava cedo dentro de casa, muito cedo. Tão mais cedo quanto o sol aparecesse também ele mais cedo no horizonte, num cenário quase mecânico que começava com o colocar da lenha no forno onde haveria de se confeccionar o café da manhã, normalmente uma valente malga de café, pão confeccionado, benzido e feito levedar nesse mesmo forno. Não faltava comida. Faltara em tempos que apenas conheço de ouvir falar. Talvez por isso comer era um acto quase religioso, com horas certas, mesmo quando coincidia com o trabalho no campo, regado com vinho de produção própria da qual conservo hoje meia-duzia de garrafas que não sei se chegarei a abrir.

O trabalho no campo era o escritorio dos Avós, o sitio onde se ganhava a jorna para o dia seguinte, fosse a podar, na apanha de fruta, maças, peras, pessegos - enormes e cheirosos - destinados ao consumo próprio ou à entrega na cooperativa. As vindimas nunca vi. No final de Setembro ou inicio de Outubro já as aulas haviam começado. Tenho pena de nunca ter participado, mas fica a imagem na minha mente de subir a uma escada para apanhar a fruta com um toque certo lateral que obrigava a que o pé ficasse agarrado à fruta.

Pelo meio havia a merenda, cuidadosamente embrulhada pela Avó num pano imaculado e algumas brincadeiras que de tão ingénuas são difíceis de explicar que um simples torrão de terra pode ser um carro ou um boi assim a imaginação o permita. Procurar ninhos nas árvores com uma precisão cirúrgica fazia também parte desse ritual, sempre com o cuidado para que a criadora não enjeitasse mais tarde as criaturas.

No campo também se semeavam e apanhavam as batatas, com o cuidado que nos era explicado de enterrar a enxada bem funda para não cortar o precioso tubérculo. Mesmo em tempos de fome as batatas sempre foram o alimento que nunca faltava. De resto era a apanha da carumba de pinheiro para o lume ou para forrar o páteo. O avô compensava o nosso trabalho pagando uns quantos escudos por cada "paveia" de caruma com um tamanho certo que não podia ser nem maior nem menor do que o que a tradição mandava. Esse dinheiro era guardado numa lata de Coqui, no qual se faziam uns furos na tampa como que para arejar o dinheiro.

- "Trabalho de menino é pouco e quem não o aproveita é louco", dizia a Avó.

Outra forma de amealhar dinheiro era apanhar caracóis quando não eram apenas para comer feitos à maneira do Avô, repletos de condimentos que lhe davam um sabor único ou à "Algarvia" como ouvi apelidar anos mais tarde ou talvez um pardal de telhado grelhado, apanhado de véspera na costela armada junto à terra, ou ainda enguias apanhadas no "Rio dos Lagos" cujo sabor nunca cheguei a conhecer. Ao fim de semana passava uma carrinha de comprava sacas deste molusco gastrópode. Havia os "profissionais" que entregavam várias, e havíamos nós que modestamente "apenas" tínhamos uma de caracóis pequenos e meia-saca de caracoletas.

Não era uma casa muito engraçada. Tinha teto, nada faltava.

Tinha uma casa de banho onde se tomava banho por um balde preso ao tecto préviamente enchido de água quente e fria pelo qual escorria água aberta por uma alavanca que geria o fluxo. Se assim não fosse o mais provável era a água terminar mais cedo do que o shampoo na cabeça. O gaz só viria bem mais tarde, tal como os esgotos ou a água canalizada. Este país nunca foi de pressas.

Mas quem precisa de torneiras que vertam água quando a meio da casa existe um poço de água sempre fresca que se retirava de um balde com um sistema de roldana. Beber de um balde diretamente do poço também não é fácil de explicar, apenas sentir.

De resto era uma cozinha, uma sala onde se comiam as refeições, num pequeno rádio escutavam-se os "Parodiantes de Lisboa" ou se via televisão teimosamente a preto-e-branco até bastante tarde. "Ainda está muito boa" dizia o Avô. Só se sente falta do que alguma vez se teve. Talvez seja esse o segredo de nos contentarmos com tão pouco.

De lado a cristaleira cujo conteúdo só era utilizado em momentos especiais, normalmente ao Domingo. O dia de toda a cristandade. Esta cristaleira e a mesa estavam antes na sala ao lado, uma espécie de santuário onde não havia autorização de entrada, tal como a porta que dalí dava para a rua e que apenas se abria uma vez por ano quando, no Domingo de Páscoa, o prior alí batia para benzer a casa e entregar umas amendoas. Nesse dia usavam-se as melhores roupas, aquelas que permaneciam guardadas o ano todo e que tal como aquela sala e aquela porta pareciam apenas destinadas aquele dia.

Na estante haviam livros. Não que os Avós fossem letrados, posto que a vida assim não havia permitido como a tantos outros nesses tempos. Eram os livros deixados pela Mãe dos tempos de ensino, onde conviviam histórias de cariz religioso, de exaltação da história de Portugal e de glorificação do todo poderoso status quo do salazarismo, incluindo meninos vestidos com os trajes da mocidade. A escrita era, contudo, rica, e lida vezes sem conta. Nada se perde, tudo se transforma. Até as mentes.

Haviam também os diários do Avô que registavam religiosamente os dias, não qualquer pormenores mundanos mas sim os ciclos do tempo, se chovia - "hoje choveo" escrevia o Avô -, se tinha feito a poda nos arressaios ou a apanha da pêra na Quinta. A ingenuidade da escrita tornava-a absolutamente genuína.

Os quartos eram pequenos mas não tenho ideia de que tal fosse um problema. Era tudo normal.

Ao fim do dia, aquecidos por um minusculo aquecedor de varetas que só aquecia se lhe encostássemos os pés, surgia a Avó com um pequeno alguidar com água onde invariávelmente o Avô lavaria os pés, sinal de um hábito de higiene que nem sempre era exemplarmente seguido. Os nossos pés andavam descalços e nunca pareciam magoar-se, as correrias, os jogos com arco e flecha ou uma pistola feita de madeira e pedaços de lenha eram tudo o que havia mas nada mais era necessário.

Não era uma casa muito engraçada. Tinha teto, nada faltava.

Havia também uma oficina com ferramentas e os utensilios destinados à agricultura, claro está ou a "casa das motorizadas" onde se resguardava uma tipica Zundapp Famel e a bicicleta. O local onde se acomodavam os fardos de palha que de vez em quando tinham de ser mexidos para retirar as familias de ratos que alí se abrigavam, indiferentes aos gatos que também por alí apareciam sem nunca terem autorização de entrar em casa para mais tarde desaparecer com a mesma rapidez, normalmente achados mortos algures. É curioso como os gatos parecem conhecer quem deles ha-de tratar bem. Talvez por isso mesmo nestes casos a morte do animal era sentida pelos Avós. Menos sorte tinham as crias fêmeas, cujo destino acontecia logo após o nascimento. Poder-se-á dizer que onde havia espaço para sentimentos, não havia para sentimentalismos. A vida há-de continuar.

No cimo da casa guardava-se a roupa velha em arcas velhas, penduravam-se os alhos e as cebolas ou secava-se o milho. Tudo tinha um destino, uma função.

O tempo parecia passar devagar, terrivelmente devagar para quem tem pressa de crescer. Mas o tempo inexoravelmente ha-de passar. Crescemos, tornamo-nos adultos ao mesmo tempo que os Avós vão envelhecendo e, a pouco e pouco, vão-nos deixando, sucumbindo à lei da vida ou definhando pela doença que consome a memória, injustiça suprema de que toda a vida merecia melhor sorte. Nesse momento também um pouco de nós morre.

Agora a casa que não era engraçada, mas que tinha teto e onde nada faltava vai mudar de dono. Nunca mais será visitada. Talvez seja melhor assim. Fica a memória de uma casa com vida, onde passavamos os verões. E é assim que a devemos recordar.

A nossa dívida para com os Avós não tem forma de ser medida, apenas reconhecida para as gerações seguintes.

Homenagem ao Avô Inácio e Avó Palmira.