domingo, 26 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 6ª semana

Muito se tem falado sobre as possíveis consequências ao nível psicológico devido ao tempo (excessivo) em isolamento social. Não sendo psicólogo de formação mas muito atento aos temas da psicologia dos comportamentos entendo que a questão faz todo o sentido, porque se baseia num pressuposto que é conhecido e reconhecido: o ser humano é por natureza social. Baseia as suas relações num contexto de comunidade. Não se trata de ter ou não um perfil numa rede social. É, antes de mais, perceber que a maioria de nós necessita do contacto com outros.

A questão é que isso, nos tempos que correm, não só não é aconselhável, como pode nem ser possível. O estado de emergência e o encerramento de grande parte de tudo aquilo que fazia parte das nossas rotinas criou uma disrupção abrupta para a qual não estávamos preparados, e mesmo que estivéssemos minimamente alertados para o que se poderia seguir, não há "treino" que resista ao perfeito desconhecido e ao avolumar de números dantescos de mortes e infetados, de novos desempregados, da necessidade de libertar presos, do aumento da violência doméstica que agora não se vê apenas se sente, dos idosos em lares que indefesos sucumbem ao vírus.

Não descobri e por isso não venho aqui anunciar a "cura" ou a solução para este problema, só posso ditar aquilo que me parece ser a opção "smart" ao longo destas semanas: manter as rotinas e criar pequenos planos por exemplo para o fim-de-semana.

Manter as rotinas significa reduzir o efeito de disrupção. Se normalmente entramos ao trabalho às 9h então que assim continue, se vamos entregar o euro milhões à terça-feira (ou noutro dia qualquer) então que se mantenha esse habito. Que se mantenham os contactos com os Clientes, as Seguradoras, os amigos a quem sempre se ligou (para não ser coisa de ocasião), os telefonemas à família que deixou de nos poder visitar (ou vice-versa), mas também aproveitar para ajudar - nem que seja apenas partilhando o assunto - nos temas de trabalho que invariavelmente acabam por ser partilhados de uma forma como nunca o foram no passado.

Ao final do dia vem o estudo da ultima disciplina do MBA que prolonga o dia de trabalho até perto da meia-noite quase todos os dias, logo a seguir ao jantar. Manter rotinas. Nada de novo. Igual ao anteriormente.

Se estas são as rotinas "boas" para a nossa sanidade mental, então que se alimente essa sanidade quebrando sempre que possível essas rotinas. Se não podemos planear para onde viajar, então que se planeie o que comer no fim-de-semana e que nos apetece afinal tanto, porque normalmente o fazíamos num qualquer restaurante. Ver um filme é o substituto do cinema agora fechado. Mas o melhor de tudo é mesmo planear o que iremos fazer depois da "tempestade" passar. Que viagens faremos? A que restaurantes iremos regressar? Pensar positivo ajuda a afastar todo a carga negativa do contexto.

A verdade é que as semanas parecem passar a correr, muito mais do que nos tempos de trabalho "normal". Não sei explicar o porquê? Será porque afinal se trabalha mais? Será porque se perde um pouco a noção dos dias? Tornou-se um pouco indiferente se estamos numa terça-feira ou sexta-feira. Deixou de haver motivos para resmungar com as segundas-feiras. Mas não podemos desesperar porque o fim-de-semana não será assim tão diferente dos restantes dias. O "segredo" é tentar mante-lo diferente.

Por aqui as rotinas são quebradas sobretudo ao fim-de-semana comendo uma boa da "carocolada" que agora voltou em força, ou mantendo hábitos de algum exercício físico, seja nas aulas de ginástica quase diárias da X. e da C. ou de uma corridas de curta duração nas redondezas, tornando aqueles 3,5kms uma prova de longa duração, a que nem o J. desta vez deixou de se associar.

Este mesmo regresso à escrita também é parte dessa nova rotina que nos mantém ocupados mentalmente e nos distrai de toda a informação negativa que invariavelmente as televisões passam a todo o momento ou até mesmo observar o desfilar de gatos e pássaros que todos os dias nos "visitam" por saberem que lhes daremos de comer, apesar de não termos qualquer retorno de empatia dos próprios nem que seja para uma pequena festinha na cabeça como se fosse a forma de nos agradecerem.

Temos de procurar fazer o bem, aos outros e a nós próprios. Melhores dias virão e anuncia-se a abertura progressiva, mas repleta de receios, da economia a partir de Maio, afinal de conta, esta foi a semana em que Portugal começou a ganhar a sua liberdade em 1974.

Neste dia 26 de Abril haviam 23864 casos registados e 903 óbitos.







domingo, 19 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 5ª semana

Faz esta semana precisamente um mês que fomos colocados em regime de tele-trabalho face ao agravar da situação e sobretudo aos receios do eventual impacto na operação da empresa no caso de um ou mais colegas ficarem infectados.

E se desde o primeiro momento a nossa missão era clara já a forma como podemos, individualmente, contribuir para diminuir as consequências do problema não é tão exacta, sendo que por um lado sentimos que contribuímos com o nosso isolamento e mantendo a empresa a funcionar o que já não é pouco, mas por outro pensamos sempre em que medida podemos fazer mais.

Da nossa parte a opção foi então de manter os compromissos que tínhamos antes com que sempre nos apoiou e que, por via da interrupção da actividade normal, se viram forçados interromper de todo essa mesma actividade, deixando de prestar o serviço habitual, seja a Academia de Jiu-Jitsu ou o ATL, os quais prontamente informaram que não iriam cobrar a mensalidade.


É aqui se coloca a questão da solidariedade e onde podemos de facto ajudar, pelo que sem excepção decidimos na primeira hora não aceitar tal disponibilidade, mantendo o pagamento das mensalidades tal como sucederia se nada se passasse de anormal nas nossas vidas. É este o contributo que podemos dar sem sair de casa, isto é, ajudar quem mais precisa a sobreviver a esta fase sem esperar nada em troca mais tarde. O mesmo se diga, claro está, ao assegurar o pagamento do salário da empregada doméstica, também ele suspenso, mas também o de dar preferência aos comerciantes do antes que queremos sejam os do depois.

A vida corre, pois, sem grandes sobressaltos. O estado de emergência foi prolongado até ao inicio do mês de Maio o que significa que estes diários semanais vão ter continuidade por mais algum tempo.

O tempo tem estado incerto onde não faltou uma granizada valente que temi pudesse destruir a minha produção de ameixas, logo agora que parecem destinadas a ser colhidas em bom numero este ano. Não foi o caso felizmente, embora tenham deixado algumas marcas.

O J. terminou mais um puzzle de 1500 peças na semana em que retomaram as aulas, sem que se perceba muito bem o que é que restará deste ano lectivo, em particular daqueles que estão em vias de ingressar na universidade. Falar-se no regresso presencial durante o mês de Maio. Veremos.

Também em Maio está previsto o retomar de uma certa "normalidade" na economia talvez mais por se perceber que corremos sérios riscos de não morrer da doença mas ficar definitivamente paralisados com os cuidados primários, posto que a cura não parece chegar tão cedo.

À falta de uma máquina de cortar relva a X. e a C. puseram mãos à obra e fizeram uma espécie de corte de cabelo à pastagem à custa de bolhas nas mãos. O fim-de-semana serviu também para matar saudades de um prato típico do norte, a francesinha, encomendado lá está no comerciante onde habitualmente vamos beber o café ao fim-de-semana.

Em vésperas de semana comemorativa do 25 de Abril há que pensar nos seu princípios, desde logo a solidariedade que este mundo cada vez mais individualista e exposto a populismos grotescos parece potenciar, sem que se perceba bem onde poderá acabar. Talvez seja como a musica cantada na voz do Chico Buarque "andamos a carregar pedras para construir tenebrosas catedrais".

Neste dia 19 de Abril haviam 20.206 casos registados e 714 óbitos.





domingo, 12 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 4ª semana

Vivemos tempos muito estranhos. Nada de novo, já o eram antes da pandemia, só se tornaram mais evidentes depois da dita. As pessoas deixaram de circular na rua, não se cumprimentam, não se encontram, tudo em prol da saúde pública. 

Resta saber como será depois de tudo isto passar isto no pressuposto mais assente numa esperança do que numa realidade prática que me leve a achar que o fim - no bom sentido, entenda-se - está próximo. Sejamos, pois, prudentes, que a coisa está para durar e já se fala, com elevada probabilidade tendo em conta quem o diz, que o estado de emergência nunca deixará de o ser antes do mês de Maio.

Esta semana é também aquela que acarreta pessoalmente uma maior carga simbólica, pois seria aquela onde parte dos planos para este ano se começariam a materializar, especialmente no que diz respeito ao ambicioso - e agora um mero sonho - de efectuar algumas viagens em família, um dos hobbies que mais apreciamos e mais gostamos de, sempre que possível, realizar.

Senão veja-se, desde logo em Abril, nesta mesma semana, deveríamos estar a caminho do Dubai para participar no Abu Dhabi World Youth Jiu-Jitsu Championship, desejo antigo da C. e de nós próprios, e com viagem até já reservada e paga e posteriormente cancelada, obrigado agora à penosa tarefa de pelo menos reaver o dinheiro, para que o prejuízo financeiro não se some ao prejuízo lúdico.

Seguidamente iríamos visitar um fim-de-semana a famosa Feria de Abril, em Sevilha, local no qual por coincidência e em trabalho havia estado no ano anterior e que despertou uma curiosidade suficientemente grande para ir lá de propósito para apreciar aquele ambiente festivo, colorido e bem bebido, sem os exageros da Oktoberfest de Munich.

Se o 25 de Abril seria em Sevilha já o ambicioso plano passava no 1º de Maio por ir 3 dias a Londres, aproveitando ao máximo o tempo disponível para ver tanto em tão pouco tempo, também cumprindo um desejo dos jovens ao qual nós claramente não nos opusemos, pois Londres será sempre Londres.

No mês seguinte seria um momento igualmente especial quando algures em meados desse mesmo mês iríamos a Washington receber das mãos do grande Jack Welch o certificado do diploma de MBA começado precisamente três anos antes, num momento muito especial na minha vida (tão especial que não cabe neste texto) e que culminará nesse mês. Contudo, este evento parecia já ensombrado por uma aura pouco propícia que, para quem nisso acredita, antecipava coisa pouco boa.

Desde logo a perspectiva de podermos passar o dia 13, dia de anos do meu pai, em Washington esfumou-se quando se percebeu que os meus sogros já haviam agendado uma viagem para essa mesma altura (entretanto também ela não confirmada, fruto das circunstâncias) pelo que alguém teria de ficar em casa a cuidar dos jovens. O segundo revés foi a notícia surgida durante o mês de Março do falecimento do próprio Jack Welch, com 84 anos, embora não relacionada com a pandemia que actualmente mata nos EUA mais do que em qualquer outro local no mundo.

O epílogo desta história triste foi o inevitável adiamento do evento para o Outono. Veremos se sim. Esperemos que sim.

Por cá os tempos correm com esta estranha normalidade. O trabalho segue o seu curso há medida que se percebe que muito antes de melhorar ainda há-de piorar, nomeadamente para as empresas, quem nelas trabalha o que necessariamente irá afectar a nossa própria operação, muito ligada ao crescimento ou retracção do mercado.

Em tudo o resto discute-se se a escola há-de recomeçar e de que forma, tendo as decisões tomadas, surpreendentemente do agrado de todos, dependente do evoluir da pandemia que permitirá ou o regresso faseado dos alunos que tinham previsto a realização de exames finais, particularmente relevante para o J. empenhado no acesso à universidade ao curso que escolheu.

Compreensivelmente a C. está mais impaciente. É menos dada a contemplações e por isso houve necessidade de dar espaço à criatividade oferecendo-lhe tudo aquilo que precisa para pintar, entenda-se o quadro, os pincéis e as tintas. O resultado promete. Eu não faria melhor. Eu nunca fiz melhor.

O tempo está como o vírus, não se percebe para onde vai. Tanto chove copiosamente como faz sol. O sol é a nossa praia e aproveita-se para o gozar, em que até os gatos parecem saborear esta estranha liberdade precária e também deu para assar uns frangos no churrasco, aproveitando o tempo favorável no fim-de-semana.

Desportivamente a X. e a C. vão alinhando nos treinos agendados pelo PT da empresa em formato digital tendo eu optado por começar a saltar à corda, até perceber rapidamente que me estava a dar cabo dos calcanhares de Aquiles, tornando evidente que se é para me magoar mais vale nada fazer. Não foi exemplarmente o caso pois voltei a dar umas pequenas corridas nas redondezas, breves 3 kms de desporto ou melhor ainda, 20 minutos de comprazimento ao ar livre. O regresso aos treinos de Jiu-Jitsu por parte do J. e da C. é, para já, uma miragem que facilmente se confunde com uma esperança.

Neste último dia da semana é também aquele em que os meus pais fazem 50 anos de casados. Infelizmente a distância e a necessidade de confinamento ainda mais agravado no período da Páscoa impediram uma reunião familiar todos juntos, como pertence. A opção mais "simples" e sobretudo mais atual foi o recurso às "novas tecnologias", juntando virtualmente o que o vírus insiste em distanciar (algo diferente de separar). Espera-se que daqui a um ano tudo isto seja apenas uma recordação distante de um tempo muito próximo. 

No final dessa semana, dia 12 de Abril, haviam 16585 casos confirmados e 504 óbitos.















terça-feira, 7 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 3ª semana

Se alguma expectativa houvesse sobre a possibilidade do atual estado de coisas se resolver em 15 dias, rapidamente se percebeu que, bem pelo contrário, a confinamento está reservado para um tempo indeterminado e nem se diga que as notícias que se vão ouvindo permita perceber que, tal como diz a famosa expressão também aqui já se vê "uma luz ao fundo do túnel".

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Por volta das 12 horas passou a haver uma espécie de novela contemporânea onde a directora da Direcção Geral de Saúde e a Ministra da Saúde, ou o seu ministro adjunto, nos colocam a par dos mais recentes números que mesmo não sendo ao nível da catástrofe que se vai vivendo noutros países, não deixa de ser alarmante.

O trabalho vai correndo no dia-a-dia dentro de uma estranha normalidade a que até pode parecer mas não nos conseguimos habituar e ajuda a colocar as coisas em perspectiva e, mesmo que trabalhar a partir de casa implique também algum acréscimo de qualidade de vida a verdade é que facilmente se compreende que provavelmente até podemos aceitar regressar ao stress do dia-a-dia uma vez que esta nova qualidade de vida acarreta uma incerteza futura demasiado pesada para podermos achar que é preferível à certeza dos dias anteriores à pandemia.

As comunicações entre a equipa são todas por escrito com raras excepções, uma vez por semana, em que agendamos uma reunião por zoom, que invariavelmente corre para uns em pleno, para outros sem imagem e, por fim para outros sem uma coisa e outra, mas pelo menos dá para perceber que lá vamos estando animados, embora não se fale propriamente de trabalho.

As escolas encerradas há duas semanas estão agora oficialmente suspensas por férias da Páscoa sem certezas sobre a sua reabertura futura e sem certezas qual a forma de ensinar e cumprir o período final do ano lectivo. Se até aqui ainda tinham uma ocupação diária agora nem isso e por isso tendem a resignar-se às suas próprias rotinas ao computador ou ao telemóvel, dado que não parecem haver grandes condições para efectuar treinos de Jiu-Jitsu ainda que Mestre António Neto tenha ensaiado um treino virtual via Zoom que não se revelou efectivo, apesar da boa vontade do J. e da C. em estarem equipado a rigor à hora agendada para o dito treino.

As compras necessárias voltaram a ser feitas na manhã de sábado, aproveitando o menor fluxo de pessoas. Acompanhando as boas recomendações só um de nós fica na fila e o outro aguarda no carro, se bem que nem o tempo parece disposto a dar algum alento pois ao sol dos dias anteriores sobrou uma chuva intensa que ditou o adiamento de mais uma "churrascada", desta vez de frango convenientemente adquirido nesse dia para esse mesmo propósito.

Lamentavelmente não foram essas condições atmosféricas que obstaram a poder tratar do jardim, cuja relva cresce a olhos vistos uma vez que por coincidência do destino a máquina de cortar resolveu avariar ao fim de 14 anos de uso, pelo as boas intenções de tratar de alguns temas sucessivamente adiados se ficou pela limpeza do quintal enquanto se fazem planos de substituir algumas árvores por duas árvores de fruto. Talvez o resultado mental do confinamento leve a pensar meios de subsistência de cultivo próprio.

Infelizmente não poderei fazer com a relva o que fiz com o cabelo uma semana antes e cortar a direito com a máquina em pente curto, rezando para que também ela não avariasse e de um momento para o outro ficasse com um corte típico de alguém com um problema mental grave.

No final dessa semana, dia 5 de Abril, haviam 11279 casos confirmados e 295 óbitos.

domingo, 5 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 2ª semana

Poderia achar-se que o famoso provérbio se aplica indistintamente da causa mas verdade é que a segunda semana chegou sem perspectivas optimistas quanto ao possível fim do confinamento social e menos ainda quanto à eventual redução da proliferação do vírus.

De Espanha e de Itália chegam todos os dias notícias impensáveis há 1 mês atrás para quem, como nós, vivia um momento de algum fulgor económico, boas perspetivas futuras mesmo que alguns arautos da desgraça anunciassem a mais do que previsível chegada de uma recessão, embora certamente os próprios estivessem longe de adivinhar que uma bactéria seria muito mais letal e rápida do que a usual ganância do homem que, de tempos a tempos, gera outro tipo de pandemias, de natureza financeira, quando se percebe que toda o sistema se alimenta muito mais de especulação do que de razão.

Os meus fundos de investimento que cresciam à ordem de uns galopantes 23% caiam agora a pique, não tendo sido pior o desastre porque no momento da declaração de pandemia pela OMS tive a decisão ajuizada de resgatar todos os fundos ainda positivos, recolhendo as possíveis mais-valias, deixando os restantes a aguardar melhores dias que, já se sabe, haverão de chegar.

Esta semana começa com uma espécie de sentimentos mistos, por um lado percebe-se claramente que as pessoas começaram a assimilar a "nova rotina", bastante visível no crescimento do volume de trabalho, seja através de e-mails ou de chamadas telefónicas o que pelo menos permite perceber que o mundo não parou e os negócios continuam a mexer. Por outro lado também passou a ser perceptivel que muitos desses negócios caminham a passo acelerado para um destino incerto, face aos problemas de tesouraria das empresas a quem, de um momento para o outro, deixaram de ter clientes e passaram a somar despesas.

Sucedem-se as medidas do governo, da UE, do BCE, do FMI, de tudo o que movimenta dinheiro no mundo, sobrando para mais tarde perceber quem e de que forma os Estados, ou seja, todos nós, iremos pagar a factura das maquinas de fazer dinheiro trabalharem agora imunes ao vírus. Em particular o lay-off passou a fazer parte do léxico comum o que naturalmente de uma forma ou de outra acabará por ter um crescente impacto no negócio da corretagem, pior ainda se se perpetuar no tempo.

Tirando isso mantivemos as boas práticas do regime de recolhimento, assegurando as mesmas rotinas de um qualquer dia normal de trabalho, que começa invariavelmente por volta das 9h da manhã, interrompe-se para a hora de almoço, recomeça das 14 horas e irá findar, às 18h da tarde. É importante manter tais rotinas não apenas para a nossa paz de espírito, eliminar falsas imagens de "férias prolongadas" e assegurar a normalidade possível aos Clientes, talvez mais do que nunca confiantes de que o seu parceiro corretor habitual não deixará de o apoiar nesta altura particularmente complexa.

O tempo lá fora está como o vírus, incerto. Tanto chove como faz sol. Se faz sol então o café a seguir ao almoço é tomado no jardim em frente à casa, com o sol pela cara, pequeno assomo de liberdade perdida, sem no entanto violar qualquer regra de confinamento.

Como em qualquer crise, particularmente esta que desaconselha deslocações, haverá sempre que tenha a arte e o engenho de adaptar a sua actividade às circunstâncias e, fazendo parte de uma comunidade relativamente pequena e de tendência rural onde (quase) todos se conhecem, tratámos de aproveitar o facto de os fornecedores habituais de carne, frutas e legumes fazerem serviço take-away, outra palavra que, mesmo já existindo passou a fazer parte do léxico comum, para nos abastecermos para os próximos dias, tendo constatado que sendo as encomendas tantas já não conseguem dar vazão a tantos pedidos, pelo que não foi de estranhar que num caso tivesse sido um táxi a fazer a entrega e noutro tivéssemos nós próprios de ir buscar ao local a encomenda de carne.

De resto a opção foi por ir aos supermercados do costume ao sábado de manhã para evitar filas, bem visíveis à distância devido ao condicionamento do numero de pessoas permitidas ao mesmo tempo no interior do estabelecimento, levando a que a dita fila se forme no exterior, com um espaçamento de pelo menos 1 metro, havendo quem use mascara e quem não a utilize, tema controverso até na "comunidade cientifica".

Ao ver esse cuidado das pessoas em assegurar a distancia entre uns e outros não posso deixar de me lembrar de certos filmes apocalípticos, onde impera sobretudo o medo. Veremos o que sobrará desse medo quando tudo finalmente passar.


Entretanto o J. começou a ocupar o tempo a fazer um puzzle de 2000 peças que supostamente deveria entretê-lo no mínimo durante 2 semanas mas que, talvez por uma questão genética, o próprio tratou de acabar numa única semana. Digo genética porque eu era precisamente igual. Desconfio que quando terminar a pandemia teremos de arranjar um espaço suplementar para arrumar os puzzles.


As redes sociais são, por esta altura, o foco onde tudo se passa, seja nas remas de mensagens via wattsup ou equivalente, onde pelo menos não faltam sinais da infindável imaginação do ser humano, desde logo motivadas por um estranho fenómeno que levou milhares de pessoas a colocarem a aquisição de papel higiénico à frente de outros bens essenciais, fenómeno esse que espero um dia venha a ser devidamente estudado e enquadrado do ponto de vista sociologico.


Mas se nessas mesmas redes sociais cai um volume considerável de informação útil e válida e até de entretenimento, também não é menos verdade que rapidamente se transformou numa espécie de pandemia paralela, onde a desinformação e as famosas "fake news" são recorrentes, umas fruto da ignorância de quem as veicula, outras manifestamente o resultado da mente perversa de quem, nestas alturas, pretende obter um ganho qualquer, mais ou menos evidente, seja ele politico ou meramente de causar alarme social.



Por isso mesmo e para bem da minha sanidade mental comecei voluntariamente a ocultar todas as notícias falsas ou de incentivo ao ódio colocando ao mesmo tempo os amigos que replicam tais mensagens, sejam eles mais ou menos chegados, numa quarentena virtual forçada de 30 dias, até lhes passarem os "sintomas".

O bom tempo de fim-de-semana permitiu o usufruto do quintal ou jardim, fazendo uso do barbeque e da possibilidade que nem todos têm de almoçar ao ar livre, ao som dos pássaros que, por esta altura e na falta do som dos carros e dos humanos, se fazem ouvir maravilhosamente.


No final dessa semana, dia 29 de Março, haviam 5962 casos confirmados e 119 óbitos.

sábado, 4 de abril de 2020

Diários de uma pandemia - 1ª Semana

Era uma vez um vírus. Creio que é assim que começam quase todas as histórias de encantar, com heróis e heroínas, vilões e os bobos de serviço, que servem para dar um toque cómico ao tom geral de tragédia que, invariavelmente terá um final feliz.

Nesta história, contudo, é ainda cedo para dizer quando será o final e, prevendo-se (e esperando-se) que seja feliz, quanto sangue, lágrimas e sacrifícios em geral será necessário derramar quando se puder afirmar, com segurança, "acabou". 

Confesso, com algum remorso, que eu próprio desvalorizei inicialmente os sinais que "vinham da China", convicto que o dito vírus que agora começava a ganhar nome próprio fosse ele Coronavírus ou COVID-19 nunca colocaria em causa o modo de vida europeu e mundial mesmo que inevitavelmente cá um dia chegasse. E chegou. Chegou com toda a pujança.

Os primeiros tempos são, já se sabe, de um misto de desconfiança e desnorte, com uma crescente insegurança, alimentada diariamente pelas televisões e pelos números esmagadores que chegam de fora mas que, em meados de Março ainda não haviam chegado a Portugal, porventura por via da nossa localização geográfica no extremo da Europa, como se de uma nuvem epidémica estivesse a varrer todos os locais mas que de alguma forma estivesse a desviar-se destas paragens, como se fossem aquelas tempestades que parecem afectar uns países mais do que outros.

Apesar da crescente ansiedade e o avolumar de informações por parte de outros corretores e parceiros seguradores que entretanto desmarcavam eventos previamente agendados e entravam agora sucessivamente em regime de tele-trabalho, nós continuávamos firmes nos nossos postos de trabalho, embora fosse notória o progressivo alheamento e consequente redução da produtividade individual em função das notícias "que iam chegando".

Mas a realidade continua a ser o que é, e a ela não é possível fugir eternamente, ainda que falar de uma "fuga" talvez se afigure como exagerado, uma vez que de uma forma ou de outra ela há-de se impor, resta saber se de forma tranquila ou pela força.

Talvez por isso mesmo num tempo quase recorde a empresa iniciou o processo de transformação das nossas rotinas de trabalho "on site" para tele-trabalho, por fases, e começando por todos aqueles que tinham uma situação familiar porventura mais exposta às possíveis consequências nefastas do vírus, isto é, aqueles colaboradores com filhos menores.

Não foi por isso mesmo estranha a notícia que eu e a X., colegas na mesma empresa durante o dia e marido e mulher no restante tempo, fomos informados da decisão de iniciar o regime de tele-trabalho a partir do dia 16 Março, passando a acumular no mesmo espaço as "funções" que durante cerca de 15 anos foi possível manter separado.

E é aqui que começam estes diários, ou falsos diários posto que serão escritos numa base semanal.

A escola por esta altura já tinha encerrado e pela frente tínhamos o desafio de articular o trabalho, os deveres escolares e tudo o mais o resto, até mesmo incerteza do afastamento dos familiares mais próximos, os pais e irmãos, por tempo indeterminado.

Sem ter entrado em loucuras de açambarcamento que se iam ouvido de quem, de forma descontrolada e antevendo o Apocalipse, desatou a fazer compras desenfreadamente, tivemos o cuidado de nos abastecer o suficiente para não ser necessário fazer compras de forma contínua, uma vez que os conselhos para "ficar em casa" eram já por esta altura uma constante, mesmo que admitindo excepções.

Por coincidência do destino também eu próprio me encontrava de "férias" do MBA ou, dito de outra forma, entre cursos, aguardando o inicio daquele que será o ultimo trimestre, tendo tomado a iniciativa de iniciar a leitura antecipada do livro aconselhado para esse mesmo trimestre, algo que admito venha a "facilitar" todo o restante trabalho que me espera.

O "quartel-general" improvisado foi montado na sala de jantar, laptops frente a frente e impressora a meio, com os telemóveis ali mesmo ao lado e um rádio que passou a debitar musica quase sempre clássica ou outros estilos sempre que a C. ocupava o meu lugar.

A primeira semana de trabalho foi, sem surpresa, verdadeiramente atípica, uma vez que tal como nós próprios muitas outras pessoas estariam a mudar as suas rotinas, adaptando-se a uma nova realidade - a dita realidade - pelo que não foram nem muitos os telefonemas nem muitos os e-mails para responder, o que permitiu intercalar as minhas próprias tarefas com os deveres escolares da C. que iam sendo enviados por e-mail e aos quais cabia responder enquanto o J. se mantinha quase sempre pelo quarto alternando o estudo e os deveres com os jogos no computador, sem nunca nós próprios intervirmos, como se fosse este o ambiente normal de uma sala de aula onde, por definição, essa intervenção jamais se verifica.

E depois havia o resto do tempo, o qual passava em boa parte a ser ocupado a ver o evoluir da situação no mundo, com o primeiro caso confirmado em Portugal "apenas" no dia 2 de Março e à data do inicio do tele-trabalho ainda sem registo de mortes por cá. 

Mas a dita da realidade é inexorável e a notícia dessa morte acabaria por chegar no dia 16 de Março.

Não há um segredo para conseguir imediatamente adaptar as rotinas tão subitamente alteradas e por não haver segredo nem técnica alguma inventada para nos explicar antecipadamente o que fazer em caso de confinamento social por via de uma pandemia. Por isso mesmo adapta-se o tempo às circunstâncias, por exemplo mantendo a rotina de fazer exercícios em casa, "tarefa" na qual participei inicialmente para rapidamente concluir que não seria por ali que iria manter a forma.

Esporadicamente faziam-se caminhas curtas e ao final da tarde, tal como curtas eram as tentativas de retomar os hábitos de corrida, sempre nas redondezas e isoladamente como diziam as regras de confinamento mas também por curtas distâncias e evitando os passeios para não nos cruzarmos com outras (poucas) pessoas que por ali também circulavam.

A verdade é que sempre achei que ao fazer as ditas corridas, mesmo que com todos os cuidados e até autorizado pelo Estado de Emergência que entretanto havia sido decretado, estava de certa maneira a fugir ao "espírito" da coisa, o qual remetia claramente para um dever de consciência de evitar o mais possível o contacto com outras pessoas para dessa forma evitar a possível propagação do vírus.

É importante referir que nesta altura não podíamos nós próprios afirmar que não estivesse algum de nós infectado uma vez que como era já mais do que sabido o tempo de incubação do dito é de sensivelmente 14 dias e até à bem poucos dias estivéramos todos em plena actividade laboral e escolar o que significa que, potencialmente, poderíamos ter estado em contacto com alguém infectado sem que esse alguém o soubesse. Aliás, pessoalmente estivera poucos dias antes em contacto com alguém que me ia relatando por mensagens o seu estado, o qual apresentava todos os sintomas "clássicos" do vírus, ainda que não comprovado por teste adequado.

Ainda assim, e porque tinha prevista uma deslocação mais a X. à empresa precisamente no dia 15 de Março entendi alertar a Administração do possível contágio dessa colega, aconselhando a que não estivesse presente na referida reunião de forma profilática, algo que embora com alguma desconfiança foi aceite, pelo que a reunião acabou por ter lugar através do recurso ao Zoom, ferramenta bastante familiar por ser usada diversas vezes ao longo do MBA.

Entretanto os meus sogros haviam regressado da República Dominicana e, correctamente, submeteram-se à quarentena recomendada a quem vinha de fora, algo que interromperam momentaneamente sob o pretexto de nos fazerem chegar umas frutas e recordações de viagem, mas que no fundo não foi mais do que um motivo para matar saudades da família, particularmente dos netos.

Assim foi estranho vê-los chegar ao portão de máscara na cara, sem qualquer forma de cumprimento direto a nós que, por seu turno, nos mantínhamos do lado de cá do portão. O distanciamento social não nos afasta apenas dos vizinhos mas também dos familiares e nesse aspecto nem este pretexto serviria aos meus pais se deslocarem de Alcobaça (ou o inverso) para matar saudades, pois a idade e sobretudo a saúde teima e colocá-los nos denominados "grupos de risco".

A par do trabalho e a crescente preocupação sobre o destino de muitas empresas nossas Clientes tentava-se perceber o verdadeiro impacto nas nossas vidas, ao mesmo tempo que se recuperavam os hábitos de leitura, colocar o visionamento de filmes em dia.

No final dessa semana, dia 22, já haviam 1600 casos confirmados e 14 óbitos.