domingo, 30 de dezembro de 2012

A náusea


De entre os temas que inicialmente entendi colocarem-se à margem das crónicas que, semanalmente, tenho vindo a publicar, figuram aqueles que se relacionam com a análise a determinados programas de televisão cujo conteúdo sendo totalmente desconhecido por mim torna inviável qualquer apreciação relativamente aos mesmos.

Tal omissão não se deve, esclareça-se, a qualquer presunção de “superioridade” intelectual perante os espectadores de tais programas ou, sequer, a intenção deliberada de menosprezar quem dedica parte da sua atenção aos mesmos.

Contudo, o facto de não “acompanhar” a sua narrativa, por manifesta indiferença, não significa que possa considerar-me imune à sua existência, tal é o “marketing” à sua volta que, queiramos ou não, nos "entra" pelos diversos sentidos, num apelo constante à nossa curiosidade.

Ora essa curiosidade é particularmente acentuada quando, relativamente a alguns desses programas, é ela própria a natureza do programa, convidando o espectador a “olhar” para dentro de uma casa, supostamente fechada para o mundo, onde se encontram homens e mulheres a “viver” vidas em conjunto, apesar de – segundo nos informam – não se conhecerem de lado algum.

O estímulo à curiosidade do cidadão comum sobre as vidas de outros cidadãos supostamente comuns, incluindo apelos descarados ao “vouyerismo”, é fomentado diariamente através de um acompanhamento por diversos ângulos (literalmente) e com recurso a todos os meios audiovisuais disponíveis.

O problema surge, de acordo com a minha percepção, com a noção de cidadão comum que é “escolhido” para ser o modelo de cada um de nós numa pseudo-representação de uma vida igualmente comum.

É que o cidadão comum não é, de facto, diferente da maioria de qualquer um de nós e, por isso mesmo, tornaria a sua presença num espaço de “representação” como o que se pretende mostrar, numa profunda monotonia mediática.

Assim sendo, a “escolha” dos intérpretes do suposto cidadão comum acenta precisamente na antítese desse epíteto, não devido a qualquer espécie de capacidade inata para uma determinada tarefa mas, pelo contrário, por manifestarem precisamente o seu oposto, ou seja, uma total abstração relativamente ao mundo que os rodeia.

A perspectiva parece ser precisamente essa, ou seja, de levar o espectador a “conhecer” as “personagens” de uma sociedade que, sendo a mesma, lhes era totalmente desconhecida, por não ser admissível que fosse sequer possível.

Ora numa época em que a discussão sobre o que é o serviço público de televisão ganhou uma nova “força” e em que parece mais ou menos certo que o único canal que presta efectivamente tal serviço (o segundo) parece condenado a desaparecer, podemos estar certos que o que nos “espera” será sempre um pouco mais do mesmo.

Ou seja, ao mesmo tempo que se encerra um canal que foi, ao longo dos anos, sendo apelidado de elitista por manifestamente não se “mover” no mesmo plano de programação dos demais, tenderemos, cada vez mais, a caminhar no sentido oposto, isto é, o da estupidificação colectiva (assim mesmo, sem aspas), até ao momento em que, confrontados com os programas que justificam esta dissertação, deixemos de nos interessar pelas suas “personagens”, simplesmente porque passámos a ser exactamente igual a elas. Assim vão as cousas.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Ludwig van Beethoven

17.12.1770 - 26.03.1827

Embora existam dúvidas sobre a autenticidade desta fotografia tendo em conta a data em que a mesma terá sido tirada e a "oficial" da invenção da fotografia, presto a minha homenagem ao grande compositor Ludwig Van Beethoven, passados 242 anos sobre o seu baptismo (desconhece-se a data de exacta de nascimento) que teve lugar na Cidade de Bonn.


O seu génio artístico e musical mas também todo o seu desespero sobre a sua crescente surdez e desejo de superar os seus problemas físicos e emocionais parecem inteiramente reflectidos nesta fotografia de um homem que caminha só, em reflexão consigo próprio.

Heiligenstadt Testament




“Aos meus irmãos Karl e [Johann] Beethoven:

Vós, que me considerais ou me fazeis passar por melancólico, obstinado e misantropo, que injustos sois para comigo! Não conheceis as secretas razões do que se passa. O meu coração e o meu espírito eram inclinados, desde criança, para o doce sentimento da bondade. Sempre estive disposto para grandes trabalhos.

Mas imaginai que, de há seis anos para cá, me vejo numa situação desesperada e esta situação foi-se agravando por culpa de médicos incompetentes, enquanto me iludiam com a esperança de uma melhoria para, finalmente, me ver apanhado na perspectiva de um mal duradouro, cuja cura demorará anos e talvez seja impossível.

Nascido com um temperamento ardente e activo, sensível aos atractivos da sociedade, depressa me vi obrigado a isolar-me e a deixar passar a minha vida na solidão. Se bem que tivesse querido na altura superar tudo isto, ah!, que impossibilitado me via ao aperceber-me do meu problema no ouvido! Não era possível dizer às pessoas: “Falai mais alto, gritai, pois estou surdo!” Podia revelar a debilidade de um sentido que devia possuir com mais perfeição que qualquer outro, um sentido de que estive dotado num grau tal que certamente poucas pessoas do meu ofício jamais possuíram? Não, não podia. Perdoai-me portanto se me afastei, ainda que quisesse tanto estar convosco. A minha desgraça é duplamente penosa, pois devido a ela vejo-me obrigado a ter de passar por impopular; para mim acabaram-se para sempre os prazeres da sociedade, as conversas interessantes e as relações com as pessoas. Absolutamente sozinho, ou quase. Só na medida em que for absolutamente necessário poderei voltar a ter contacto com a sociedade; devo viver como um maldito. Se me aproximo das pessoas, sinto-me automaticamente atormentado por uma terrível angústia: a de me sujeitar a que adivinhem o meu estado.

Assim passei os últimos meses no campo, aconselhado pelo meu competente médico, para cuidar dos meus ouvidos o melhor possível. Ele quase previu a minha situação, se bem que às vezes, movido pelo desejo de companhia, me tenha afastado do caminho que me está destinado.

Mas, que humilhação quando alguém ao meu lado ouvia o som de uma flauta ao longe e eu não ouvia nada, ou quando alguém ouvia um pastor cantar e eu não conseguia escutá-lo! Tais circunstâncias enchiam-me de desespero, e faltou pouco para que pusesse fim á minha vida. A arte e só ela me salvou! Parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter transmitido todo o que sentia nascer em mim, e assim, prolonguei esta vida miserável, com um corpo tão frágil que qualquer mudança brusca basta para acabar com a sua saúde. Paciência! É tudo o que devo fazer agora e assim o faço. Espero manter-me na determinação de esperar até que a cruel morte faça acabar com tanta amargura. Talvez fosse o melhor, ou talvez não, mas sou corajoso. Aos vinte e oito anos, ver-me obrigado a tornar-me filósofo não é agradável e, para um artista, é mais duro do que para outro homem. Meu Deus! Tu que do alto vês o mais fundo do meu ser, sabes que dentro de mim se movem desejos de fazer o bem e de amar o próximo. Vós, homens, se lerdes isto algum dia, pensai que tereis sido injustos comigo e que quem é infeliz se consola procurando alguém semelhante a ele. Apesar de todos os obstáculos da natureza, fiz, no entanto, todo o possível para ser admitido na categoria dos artistas e dos homens de valor.

Ao mesmo tempo, declaro-vos aqui herdeiros da minha pequena fortuna (se é que se pode chamar assim). Reparti-a com honestidade; respeitai-vos e ajudai-vos mutuamente. O que fizestes contra mim, há tempo que vos perdoei, bem o sabeis. A ti, irmão Karl, agradeço-te especialmente o afecto de que me deste provas nos últimos tempos. O meu desejo é que a vossa vida seja melhor e menos triste que a minha; recomendai aos vossos filhos a Virtude, que é a única coisa que nos pode fazer felizes e não o dinheiro, sei-o por experiência; é ela que me conforta na minha aflição; devo-lhe, assim como à arte, o não me ter suicidado.

Mas assim aconteceu. Corro ao encontro da morte com alegria. Se esta, no entanto, chegasse antes de não ter tido tempo de desenvolver todas as minhas faculdades artísticas, fá-lo-ia demasiado depressa.

Apesar da infelicidade do meu destino, queria que ainda demorasse. Mas mesmo assim havia de me conformar: a morte não me livraria talvez de um interminável sofrimento? Que venha quando quiser, irei ao seu encontro com alegria. Adeus, e não me esqueçais após a minha morte.

Bem o mereço, pois pensei em vós muitas vezes e desejei que fosseis felizes: sede-o.

Heiligenstadt, 6 de Outubro de 1802, Ludwig van Beethoven”.


domingo, 23 de dezembro de 2012

Urbi et Orbi


De acordo com uma informação recentemente tornada pública a Igreja Católica em Portugal estará a perder, de forma sistemática, parte significativa dos seus seguidores.

Esta “confissão” por parte da hierarquia da igreja tem tanto de surpreendente como de evidente.

É surpreendente porque raramente no passado a Igreja se dispôs a esta reflexão na medida em que da mesma decorre uma exposição mediática que “alimenta” as máquinas editoriais dos órgãos de comunicação o que, no limite, poderá colocar em causa a dita hierarquia.

Do mesmo modo não posso deixar de entender esta constatação como evidente posto que a mesma era por demais visível para ser ignorada, mesmo aos olhos de quem assumidamente não professa a religião cristã.

Os motivos para este afastamento são certamente diversos e divergentes quanto à sua possível interpretação, pelo que não pretendo eu próprio sobrepor-me a essa discussão, facto que ainda assim não me impede de reflectir sobre a mesma.

Fundamentalmente o meu entendimento é de que a ausência de fiéis nas igrejas não se deve necessariamente à ausência de fé ainda que, como sempre aconteceu ao longo da História, tal constitua um motivo óbvio para o abandono das celebrações cristãs.

O que se passa será mais uma reacção à própria forma como a mensagem de fé é transmitida actualmente quer ao nível da mensagem pública quer ao nível daquele que é o seu “auditório” por excelência, isto é, o das próprias igrejas.

Este nosso mundo é hoje muito distinto daquele que era há uma década atrás e certamente ainda mais dispare relativamente às décadas anteriores e, mesmo que tal nem sempre constitua o registo de uma evolução civilizacional, a verdade é que se o “tal” mundo mudou foi porque as pessoas mudaram.

Ora esta mudança deve-se, em grande parte, à força “esmagadora” como os nossos comportamentos são condicionados pela massificação da informação, a qual surge por todas as vias, como se fossemos todos a personagem do filme “Laranja Mecânica” do realizador Stanley Kubrick quando este é forçado a assimilar imagens desagradáveis para moldar os seus pensamentos e, por arrastamento, as suas acções futuras.

Ressalvadas as devidas diferenças torna-se evidente que daí resulta uma maior exposição das pessoas a correntes de pensamento diferentes – e, por vezes, divergentes – da linha de orientação da igreja católica.

Daqui resulta que não é tanto a fé que muda ou simplesmente desaparece, mas sim a forma como se interpreta a fé que muda radicalmente até um possível momento em que se opera uma mudança na auto-convicção que o “exercício” da mesma não passa necessariamente pela frequência do espaço físico de uma igreja.
Acresce a este facto que a “mensagem” que é transmitida por sacerdotes e restantes membros do Clero não terá sofrido a eventual necessidade de adaptação ao “discurso” dos tempos que correm, já para não falar na absorção de alguns temas – ditos fracturantes – que para além da polémica que lhes está inerente tem vindo a ser objecto de regulação em boa parte dos países civilizados em rotura clara com a doutrina da igreja, quedando-se “presa” aos seus próprios dogmas.

Numa perspectiva de carácter mais filosófico podemos ainda imaginar que o distanciamento se verifica igualmente como reflexo pelo aumento de um sentimento de frustração por um Mundo essencialmente injusto, em que não parece haver lugar para uma resposta aos anseios de quem sofre com as guerras, a fome e outras tragédias que tais a quem ninguém parece valer, seja a boa vontade dos homens seja a infinita misericórdia divina.

No entanto, creio que haverá uma outra abordagem a fazer e que resulta da constatação que boa parte dos fiéis “tresmalhados” fizeram simplesmente uma espécie de transição para outras confissões religiosas ou ainda para outros movimentos normalmente apelidadas de seitas.

Talvez fosse por aqui que a igreja Católica devesse começar a sua tarefa de retomar os caminhos da fé dos seus “desapontados” seguidores, isto é, percebendo o motivo pelo qual mais do que “perder” a fé as pessoas a procuram noutros lados.

A resposta a esta questão é extremamente complexa e, creio, não se encontra dissociada dos tempos de crise em que vivemos em que, mais do que tudo, as pessoas procuram respostas para as suas dúvidas e expectativas. E, sobretudo, querem respostas rápidas e nesse capítulo específico não falta que as possa prometer nem que seja a troco de uma compensação de natureza bem terrena.

Na base desta “adesão” a quem surge como a solução rápida para qualquer problema está a fragilidade com que alguém se apresenta perante esse mesmo problema relativamente ao qual os modelos ancestrais de devoção parecem já não fazer sentido.

É esta a encruzilhada que a Igreja Católica enfrenta actualmente e da qual a própria só estará em condições de escolher o caminho adequado se, mais do que tentar interpretar os sinais divinos, começar também a escutar as mensagens das pessoas. Assim vão as cousas.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Presidente da Junta

Dizem os livros de História e demais literatura que “teima” em recordar-nos que, aquilo que hoje somos é a soma do momento presente e de todo um passado, em 1878, o País compunha-se de 21 distritos no Continente e Ilhas (17 só no continente) e 295 concelhos (263 no continente).
 
De lá para cá, é fácil concluir, pouco ou nada mudou na organização, meramente numérica, do Estado pois, como é sabido, a actual divisão administrativa do Estado português “diz-nos” que o território se encontra dividido em 308 municípios, vulgo concelhos ou autarquias locais, os quais, por seu turno, estão geograficamente distribuídos por 18 distritos e 2 regiões autónomas.
 
Dentro de cada um destes concelhos existe uma subdivisão, que é, de todas, a menor divisão administrativa, mas igualmente aquela que existe há mais anos.
 
Essa subdivisão tem o nome de freguesia e em Portugal existem 4260, abrangendo desde territórios exíguos a geografias suficientemente vastas para quase se equipararem, neste aspecto específico, a alguns Concelhos, situação que é igualmente válida para o respectivo número de habitantes que varia entre as poucas dezenas e os largos milhares.
 
Estas freguesias foram, até ao advento do liberalismo, sinónimo de uma outra palavra – paróquia - que, ainda hoje, é utilizada com alguma recorrência, porventura desconhecendo que tal se devia ao facto de não existir uma verdadeira separação entre a estrutura civil e a eclesiástica, donde resultou a assimilação do termo freguês, isto é, o habitante da freguesia que frequentava a igreja.
 
A verdade é que estas freguesias, então paróquias, remontavam ao período da Idade Média, isto é, são em si mesmo muito anteriores a qualquer forma de organização do Estado, tal como o conhecemos actualmente.
 
Daí que qualquer alteração, independentemente do maior ou menor mérito da mesma, “esbarra” normalmente com um sentimento bastante enraizado nas populações que temem, por via de tal alteração, perder a nexo que as “prendem” a uma determinada comunidade, porventura com largas centenas anos de História.
 
As freguesias são, como não podia deixar de ser, constituídas por órgãos próprios, com legitimidade própria por via da eleição de forma directa (Assembleia de Freguesia) ou indirecta (Junta de Freguesia), havendo a particularidade de, em determinados casos quando a respectiva população é reduzida, que a Assembleia de Freguesia seja substituída por um plenário constituído pelos respectivos cidadãos eleitores.
 
Por outro lado se existem exemplos de concelhos que têm um número significativo de freguesias (perto de uma centena) outros há que são compostos por uma única freguesia cujo espaço geográfico corresponde, dessa forma, aos próprios limites do concelho.
 
É, portanto, relativamente fácil concluir-se que, neste domínio, é possível encontrar freguesias em Portugal para “todos os gostos e feitios”, conforme diz a expressão popular.
 
De entre as diversas classificações de freguesias actualmente existentes, é especialmente relevante referir as freguesias rurais, por serem estas que devido à sua reduzida densidade populacional e território, são porventura hoje em dia o melhor “espelho” do referido sentimento de comunidade, facto que normalmente resulta igualmente da interioridade de algumas destas povoações.
 
Talvez por isso mesmo serão estas, porventura mais do que quaisquer outras, que parecem “condenadas” a desaparecer do mapa autárquico que se vai “desenhando” na Assembleia da República e do qual resultará uma redução substancial do actual número de freguesias, absorvidas por outras de maior dimensão, tudo isto, como não podia deixar de ser, ao abrigo dos termos do memorando de entendimento com a “troika”.
 
Antecipo, contudo e em forma de sumula do que atrás referi, que estas medidas irão determinar uma forte contestação popular, da qual apenas se vislumbrou uma pequena “amostra” mas que certamente ganhará dimensão após a aprovação da lei (nomeadamente em forma de boicote eleitoral), momento em que as pessoas tomarão consciência em que medida é que a mesma irá mudar a percepção do espaço em que habitam.
 
Pessoalmente não ignoro os méritos de uma nova organização administrativa, nomeadamente os elementos positivos que daí tenderão a decorrer, devido à potencial optimização administrativa daí resultante, nomeadamente ao nível a gestão dos serviços de saúde, ensino, justiça, entre outros, fruto de uma realidade bastante actual que deriva do acentuar das assimetrias regionais e, ainda mais preocupante, a desertificação de certas regiões.
 
Contudo, a análise aos eventuais méritos não permite ignorar que todo o processo que doravante “ganhará” força de lei, possa resultar de uma avaliação a partir da qual a futura distribuição administrativa, mais do que considerar os interesses das populações e as realidades locais, se limitou, isso sim, a configurá-los numa “folha de cálculo”, isto é, reduzindo a sua importância à frieza de um mero número. Assim vão as cousas.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Game over


No filme “Melancolia” de Lars von Trier as personagens do drama familiar que aí se desenrola são confrontadas com a colisão eminente de um planeta – cujo nome corresponde ao título do filme – com o planeta Terra.

Não sendo meu propósito efectuar qualquer crítica cinematográfica à referida película nem tão-pouco remeter para profecias atribuídas a civilizações desaparecidas, interessa-me, antes de mais, extrair do mesmo duas “licções” que são possíveis tirar e, partir de então, dar o mote para a presente dissertação.

A primeira “licção” é a da nossa própria significância perante um evento de natureza literalmente esmagadora ou como é corrente dizer-se, de proporções bíblicas.

No fundo – e esta percepção é muito nítida no filme – a nossa capacidade de reacção a um tal fenómeno é totalmente nula, pelo que a única possibilidade viável que restaria é aceitação de um facto consumado e aguardar o momento da nossa própria extinção, que em tais circunstâncias passaria a ter data e hora marcada.

A segunda “licção” resulta do facto do final do filme ser previamente anunciado no seu início, isto é, o espectador conhece desde o primeiro momento que o destino da Terra é aquele e não será qualquer outro, mesmo que ao longo dos seus 136 minutos de duração possa “esperar” e, sobretudo, "desejar" outro final para um planeta que, afinal de contas é aquele em que vivemos, não se conhecendo outro com condições para tal.

Como qualquer licção que se preze também estas têm um ensinamento incluso que remete precisamente para o espírito com que conduzirei seguidamente as próximas linhas.

O primeiro ensinamento resulta da convicção pessoal que de certa forma o Planeta Terra vive em termos reais com uma situação cuja analogia à componente catastrófica do filme “Melancolia” é por demais evidente.

Este pequeno Planeta é, em bom rigor, uma "aberração cósmica, pela nada despiciente circunstância de não se conhecer ainda qualquer outro que tenha sequer condições aproximadas para a criação e desenvolvimento de condições de vida.

Ora, tal só acontece porque esta pequena bola se encontra situada no único ponto do Universo (conhecido) em que essas condições seriam possíveis face ao posicionamento do Sol, tendo em conta a inclinação do planeta, do qual resulta que nem é suficientemente quente nem suficientemente frio para impedir a vida humana.

Em qualquer outro local estas condições por e simplesmente não existem.

Daqui resulta uma elevada fragilidade às “ameaças externas” que podem não assumir a forma de planeta como no filme mas podem resultar – como já sucedeu no passado – do impacto de outro tipo de objectos “espaciais”, nomeadamente meteoritos ou até da violência menos conhecida acção da exposição aos raios solares dos quais se conhece unicamente a “parte bonita” em forma de aurora boreal.

Em função da sua dimensão e imprevisibilidade a nossa capacidade de defesa a tais ameaças poderá não ser diferente da verificada no filme e, nesse caso, as consequências serão certamente as mesmas.
Mas se existem as referidas “ameaças externas” não é menos verdade que também podemos falar de verdadeiras ameaças internas (propositadamente sem aspas) e este é, desta forma, o fio condutor do segundo ensinamento.

Mais do que os factores externos que possam constituir uma séria ameaça, é precisamente com os factores internos que necessitamos, cada vez com mais sentido de urgência, de nos preocupar.

Sinal disso mesmo e o facto de, ciclicamente, alguns Estados e Organizações se encontrarem em reuniões de dimensão global para falar de temas relacionados com a sustentabilidade do meio-ambiente, redução da emissão de poluentes, diminuição do chamado “efeito-estufa”, etc.

Contudo, não obstante esta manifestação de preocupação – que se presume séria – por um tema de importância vital, quase sempre estes encontros redundam em acordos de princípio que, mesmo assumindo a forma de compromisso comum, raramente vinculam de forma inequívoca ou sequer penaliza, aqueles que precisamente mais contribuem para o motivo que está subjacente a tais reuniões.

Por isso mesmo o ambiente passa por ser um tema permanentemente adiado o que não significa outra coisa que o problema se vai agravando.

Ou seja, parecemos andar todos um pouco a desejar – mais do que procurar – encontrar um final feliz para uma História relativamente à qual, e tal como filme “Melancolia”, todos nós já conhecemos previamente qual será o respectivo final, apenas não queremos é reconhece-lo e se de facto queremos evitá-lo. Assim vão as cousas.

domingo, 2 de dezembro de 2012

A genealogia de um povo - Parte II


No âmbito das políticas de recuperação económica do país, o Governo definiu a necessidade do fim de pelo menos quatro feriados.

Ora, sabendo-se que os feriados se dividem equitativamente entre aqueles que são de natureza civil e os demais de índole religiosa, surgiu naturalmente a ideia de partilhar da mesma forma o “sacrifício” - a bem da nação - de “deixar cair” em partes iguais um total de 4 datas correspondentes a feriados nacionais.

O Governo, como não podia deixar de ser, apressou-se logo a avançar com as suas próprias sugestões de eliminar o feriado do 5 de Outubro e o de 1º de Dezembro, para além de ter “avisado” os portugueses praticamente de véspera que o feriado “tradicional” do Carnaval também não teria lugar no calendário de 2012.

Já do lado da Igreja a coisa não tem sido fácil, face aos mecanismos internos decisórios subjacente a uma decisão de tão grande importância e que no caso vertente previa a supressão dos feriados do “Corpo de Deus” (feriado “móvel” celebrado em Junho) e da “Assunção de Maria” (a 15 de Agosto).

Independentemente da convicção de que num Estado laico a existência de feriados de natureza religiosa são, porventura, em si mesmo uma contradição com tal princípio constitucional e uma situação de “privilégio” face a outras confissões religiosas, a verdade é que a principal “dificuldade” revelada pela Igreja quanto à decisão a tomar se prende com uma situação muito concreta.

A questão é que a abolição de tais feriados colide frontalmente com o significado de cada uma das referidas datas para quem professe a religião cristã, facto que se coloca aquém e além da perspectiva bastante terrena subjacente à “necessidade” da referida abolição, que segundo nos “informam” se prende com o aumento da competitividade do país.

Desse ponto de vista o Estado parece ter uma posição mais confortável uma vez que não tem de “lidar” com questões de natureza divina e por isso mesmo uma qualquer decisão administrativa é suficiente para ganhar força de lei e de uma penada “passar à história” as duas datas avançadas inicialmente.

Para além das sérias dúvidas pessoais de que a eliminação de qualquer feriado constitua uma medida suficientemente eficaz para os objectivos a que se propõem, a verdade é que a análise a esta questão poderia e deveria colocar-se igualmente num plano diferente relativamente à perspectiva com que actualmente é analisado.

Esta perspectiva é aquela que nos remete para o significado de cada uma das datas em causa, ou seja, o motivo pelo qual em determinado momento se convencionou que, em tais dias, se deveria assumir como festivos.

Talvez esta associação à aparente “festividade” dessas datas seja o equívoco que determinou o seu fim, em relação ao distanciamento temporal crescente face ao momento em que as mesmas tiveram lugar, do qual resulta que não existam praticamente “testemunhos vivos” de uma delas (o 5 de Outubro) já para não falar da inviabilidade prática de tal suceder quanto ao evento que ocorreu a 1 de Dezembro de 1640.

Contudo, estas datas não adquiriram o seu significado próprio por representarem dias de festa ou de algum momento de carácter meramente profano, mas sim por “conduzirem” a nossa memória colectiva para dois momentos-chave da nossa História.

Tais momentos são os da Independência e os da Liberdade.

Independência face ao domínio estrangeiro que governou o país durante 60 anos e de Liberdade perante um regime de natureza autoritária do ditador Franco (o João) e de uma monarquia caduca inteiramente desligada da realidade da sociedade que supostamente dirigia.

Questiono-me, desta forma, se estes dois primados de qualquer sistema democrático não devem ser objecto de uma comemoração especial – ainda que em forma de feriado – que nos recorde a todos que em certos momentos da nossa vida é necessário lutar por objectivos que ultrapassam a natureza pessoal, firmando-se nos anseios e vontade colectiva de todo um País.

Sintomático desta desvalorização é que a mesma ocorra num momento de especial fragilidade do País, em que a sua soberania é colocada (ainda mais) em causa pela necessidade de intervenção externa.

A conclusão que podemos daqui retirar é que a Igreja Católica compreende que o fim dos feriados que lhe “tocaram” poderá representar uma nova “machadada” na crise de vocações que cada vez mais a afecta, em virtude da diluição do significado desses mesmos dias num qualquer normal dia de trabalho.

Em sentido contrário é líquido pensar que o Estado não só não valoriza este carácter quase imaterial associado às datas em causa ou, pior ainda, quererá por e simplesmente confiná-los ao nível meramente académico dos livros de História ou da curiosidade daqueles que ainda vão ocupando o seu tempo a reflectir sobre estas matérias.

Acontece que, à medida que vamos suprimindo os símbolos da nossa própria identidade estamos igualmente a deitar por terra as últimas “parcelas” da soberania de um país através da eliminação dos seus valores fundamentais, isto é, aqueles pelos quais vale definitivamente a pena lutar. Assim vão as cousas. 

domingo, 25 de novembro de 2012

Cubo de gelo

De forma mais ou menos repentina, os olhos dos europeus em geral e dos estados-membros da EU actualmente objecto de intervenção externa por parte da “famosa” troika do FMI, BCE e Comissão Europeia, voltaram-se para um território situado a meio caminho entre o Reino Unido e a Gronelândia.

Esta terra ancestral, onde outrora habitaram guerreiros vikings, e que é em grande parte constituída por lagos e glaciares, para além dos célebres vulcões que conseguem parar um continente inteiro, dá pelo nome de Islândia.

Entre outros “títulos” de que este território - que não tem mais de 320.000 habitantes - se podia orgulhar, consta o de sétimo país mais produtivo do mundo em 2008 (PIB per capita) e o quinto mais produtivo do globo em termos de poder de compra ou ainda o 5º classificado no Índice de Liberdade Económica em 2006 e o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano em 2007 e 2008, sendo também considerado um dos países mais igualitários deste Planeta.

No entanto, toda esta realidade escondia uma outra bastante menos dada a prémios de mérito e que haveria de ser conhecida, para não variar, no ano 2008, com a “explosão” em todo o seu esplendor, da crise económica, nomeadamente fruto de uma exposição da divida da banca islandesa que, segundo consta, seria 6 a 10 vezes superior ao PIB da Islândia, o que levou a inevitável falência desses mesmos bancos e, por arrastamento, do próprio país.

Tal como se verificou posteriormente com outros estados deste mesmo continente, a Islândia viu-se forçada a recorrer a um pacote de resgate junto dos “credores do costume”.

Contudo, o “exemplo islandês” termina por aqui no que toca à comparação possível com os referidos países intervencionados.

Assim sendo e para além da desvalorização da própria moeda – algo que os países da zona Euro estão por inerência impedidos de fazer – os islandeses trataram de “correr” com o Governo neoliberal que havia “permitido” tal desvario económico, levando inclusive o anterior Primeiro-Ministro a sentar-se no banco dos réus (coisa rara e nunca vista noutros quadrantes), ou ainda do Governador do Banco Central e dos respectivos assessores.

Não obstante este enquadramento, o novo Governo Islandês haveria de assumir o compromisso do pagamento da gigantesca dívida ainda que, também neste particular, com nuances perfeitamente evidentes relativamente a tudo aquilo que temos vindo a presenciar noutras “paragens”, nomeadamente pela recusa em tornar os cidadãos islandeses responsáveis pelo pagamento da divida bancária, facto que seria confirmado quase por unanimidade em referendo efectuado para o efeito.

Desta forma, o reconhecidamente competente estado social dos países nórdicos, incluindo naturalmente a Islândia, manteve-se intacto e, 33 meses depois do resgate financeiro o país passou da bancarrota à recuperação, com um crescimento do PIB estimado para este ano de 2,4%, em total “desalinho” com a média europeia que prevê uma contracção de 0.3%.

Ao mesmo tempo o desemprego, que havia “disparado” inicialmente, foi sendo sucessivamente reduzido até aos actuais 4,8%, retomando-se a valorização da moeda, o aumento da exportações e, algo que actualmente parece pouco relevante, aumentando igualmente as importações, o que não tem outro indicador que não seja de reflectir o aumento consumo e do rendimento disponível das famílias.

Tudo isto porque, aparentemente, este país demograficamente irrelevante “conseguiu” impor a inversão do ónus da responsabilidade pelas perdas aos respectivos credores, ao invés de o fazer por via de políticas de austeridade que, por exemplo, levam a que 80% do esforço da consolidação na proposta de Orçamento de Estado português para 2013 seja do lado da receita, ou seja, do esforço fiscal de quem menos contribuiu para a actual situação.

O paradigma de tudo isto é que grande parte dos elogios ao comportamento da economia islandesa subsequente ao respectivo pedido de ajuda financeira tem partido das estruturas do FMI, isto é, precisamente os mesmos que têm vindo a negociar pacotes de resgate que incidem quase exclusivamente nas chamadas políticas de austeridade que, ao invés de resultarem em crescimento dos Estados intervencionados e do respectivo emprego, têm precisamente tido o efeito contrário, com consequências que estão longe de ser conhecidas

Contudo, de acordo com a minha percepção a principal diferença entre o “processo” Islandês e os demais residiu na capacidade de um povo em discernir entre a vontade de se reerguer conduzindo o seu próprio destino ou vergar-se aos ditames daqueles que aparentemente mais têm a ganhar com o nosso próprio fracasso. Assim vão as cousas.

domingo, 18 de novembro de 2012

O buraco negro

Os últimos dias “trouxeram”, com “entusiasmo” redobrado, para a primeira linha do espaço noticioso e das redes sociais, a mensagem da condenação pública do anterior executivo relativamente aos males de que o país padece.

Sem querer entrar directamente nesta “frutuosa” e “estimulante” disputa de apurar entre aqueles que nos governaram e aqueles que nos governam qual o maior “contribuinte” para o actual desgoverno, interessa-me, isso sim, analisar o momento em que tais notícias surgem, agora que o país “discute” os termos do segundo orçamento para 2013.

Ora, nesta mesma semana, o Sr. Jean-Claude Juncker, presidente do Euro Grupo, manifestou o seu contentamento pela consolidação orçamental portuguesa verificada no corrente ano ao mesmo tempo que a Sra. Angela Merkel valida (se necessário fosse) a chamada “política de austeridade” do actual Governo, durante a sua curta “estadia” por cá.

Em qualquer dos casos a apreciação positiva dada por tão ilustres representantes da actual Europa a 27 velocidades, não pode deixar de ser entendida como o resultado de uma ponderação sobre os resultados da referida politica de austeridade, bem como da execução do orçamento de estado - o primeiro da responsabilidade da actual maioria - e aquele que, em bom rigor, se encontra “alinhado” com os termos e os compromissos assumidos pelo Estado Português no âmbito do memorando assinado com a “troika” o tal que, para quem disso não se recorde, foi validado pelo Governo de então e pelos dois partidos que actualmente compõem a coligação.

A parte que torna mais difícil de entender esta equação é que, precisamente no mesmo espaço temporal – se assim podemos chamar – em que uns proclamam o sucesso do programa de ajustamento e da consolidação orçamental, são tornados públicos outros dados que colidem frontalmente com esta visão que poderia ser apelidada de cor-de-rosa, não fosse o caso do Governo privilegiar os tons laranja e azul.

E que notícias foram, afinal, essas que surgem em manifesto contra-ciclo com o entendimento dos “senhores da Europa”?

São precisamente aquelas que parecem demonstrar que o optimismo de uns parece não ter reflexo na realidade, excepto se numa espécie de maquiavelismo tardio, alguém possa colocar o epiteto de sucesso num país que atingiu no terceiro trimestre deste ano a sua mais alta taxa de desemprego de sempre, ou ainda que, afinal de contas, o “deficit” previsto para este ano – já de si revisto em relação à estimativa inicial – ficará acima do acordado com a “troika”, ou mesmo que a queda do PIB se situa actualmente em 3,4% em relação ao mesmo período ano transacto.

Mas não só. Também aquele que tem sido o pilar de algum equilíbrio da balança comercial do Estado – as exportações – revelam um sentido descendente, contrariando a sua tendência inicial a que se soma a convicção/certeza de que a recessão para este ano se deverá situar em 3% e de 1.6% no próximo ano, ou seja, acima das expectativas do Governo.

Associado a tudo isto regista-se um número crescente de falências ou ainda um fluxo de emigração que não era vista por cá desde os anos 70, face à incapacidade do país em gerar emprego ou ainda pelo agravamento da situação fiscal da generalidade dos cidadãos, seja daqueles que trabalham seja daqueles que ficaram desempregados ou daqueles que nem uma coisa nem outra, por se encontrarem já reformados.

Nada do que atrás fica dito é fruto de uma imaginação tortuosa ou extraída de um qualquer panfleto de uma organização contestatária, mas sim a súmula dos dados que INE, Banco de Portugal, CES, OCDE têm vindo a publicar e, pasme-se, do próprio FMI que curiosamente, parece cada vez mais ter interiorizado que a sua “receita” contra a crise é, no mínimo, falível, como aliás recentemente e humildemente tiveram a ocasião de reconhecer. 

Dito isto quais são, afinal de contas, os dados de que o Sr. Juncker e a Sra. Merkel dispõem que os faz exibir tamanha confiança na economia portuguesa?

Ninguém – talvez nem os próprios – saberá ao certo as motivações do Governo e de tais pessoas para aparentemente rejubilarem com tão evidentes sinais contraditórios, provenientes, repito, de insuspeitas instituições nacionais e internacionais.

Por isso mesmo, não será de estranhar que falhando o orçamento e respectivo rectificativo, as metas do memorando com a “troika” ou das sucessivas e renovadas medidas de austeridade, sejamos tentados a, uma vez mais e em uníssono, dizer que a responsabilidade de tais falhanços é de outros e não de nós próprios.

E assim será até ao momento em que, de tanto olhar para trás ignorando o que está para a frente, percebam que estão novamente fora do Governo e que são, uma vez mais, oposição. Assim vão as cousas.     

domingo, 11 de novembro de 2012

Segredo universal

Revisitando uma cena já vista anteriormente, embora com actores diferentes, o Dr. Pedro Passos Coelho terá sido objecto de escutas telefónicas que, de imediato levantaram as habituais suspeitas sobre o teor menos lícito ou, no mínimo ético, da relação entre o poder e os outros “poderes”, nomeadamente os do sector bancário.

Confrontado com a notícia das escutas o Primeiro-Ministro respondeu que nada tendo a temer relativamente ao seu conteúdo, permitiria que as mesmas fossem tornadas públicas.

Esta posição, assim tomada, nada teria de extraordinário à luz do velho princípio de que “quem não deve, não teme”, mas afasta a atenção da questão essencial que está subjacente ao próprio tema, isto é, aquele a partir do qual se fica a saber que o Primeiro-Ministro estava sob escuta durante uma determinada conversa.

Ora, este tema remete imediatamente para uma análise ambivalente, sendo a primeira das vertentes aquela que remete para o poder de um juiz para promover uma diligência de escutas - seja ao Primeiro-Ministro ou a qualquer outro cidadão - sem que exista, pelo menos aparentemente, qualquer indicio que o escutado esteja a ser alvo de uma investigação ou seja suspeito da prática de qualquer facto ilícito.

Esta conclusão é possível de extrair quando passa a ser público que a referida escuta ocorreu e que alvo da mesma era uma figura pública altura em que não falta quem, nomeadamente as mais relevantes individualidade hierarquia judicial e na investigação criminal, surgem de forma igualmente pública a revelar a inexistência de qualquer facto criminalmente censurável.

A questão que se coloca – e deve mesmo colocar-se – é, se tal é o caso, qual o motivo para a existência de uma diligência de escutas e quem é que as “encomendou”?

É que se a causa não existe o mesmo já não se pode dizer da respectiva consequência, bastando para o efeito que passe a existir a dúvida ou a suspeita pública, consoante a percepção de cada um, facto especialmente evidente num conjunto de situações que envolveram escutas ao anterior Primeiro-Ministro, das quais nunca resultou qualquer processo judicial mas que haveriam de minar drasticamente a respectiva credibilidade aos olhos daqueles que o haviam eleito.


Ligado a esta vertente surge sempre – literalmente – a difusão pública do conteúdo dessas escutas num qualquer órgão noticioso que remete para primeiro plano normalmente apenas uma parcela das mesmas em forma de parangona noticiosa que, independentemente da sua correcta ou incorrecta contextualização, contribui para o acentuar do efeito referido no parágrafo anterior.

A este efeito, que se convencionou chamar de “violação do segredo de justiça”, mas que eu entendo bastante mais adequado apelidar unicamente de “violação da justiça” uma vez que o elemento do “segredo” encontra-se manifestamente fora desta equação, caso contrário não seria violado.

Este problema, transversal a todos os Governos, parece, aparentemente, insolúvel independentemente da “vontade” normalmente demonstrada pelo respectivo titular da pasta da justiça, Procurador-Geral, entre outros.

Curiosamente (ou talvez não) quem parece menos envolvido na “luta” contra esta forma sub-reptícia de justiça “’pelas próprias mãos” são precisamente aqueles que têm o dever de decidir entre quem deve ser escutado e em que circunstâncias, nomeadamente pela voz dos seus representantes sindicais, a quem este tema não parece “incomodar” apesar de envolver directamente a respectiva classe.

Por isso mesmo facilmente se pode concluir que entre os silêncios de uns, as omissões de alguns e, por fim, os interesses inconfessados de outros, cada vez mais se “aponte o dedo” à crescente judicialização da política da qual resultará, num futuro próximo, que os eleitores passarão a escolher os seus representantes em função do poder arbitrário de um juiz ao invés da sua própria vontade. Assim vão as cousas.

domingo, 4 de novembro de 2012

Rigor mortis

Recentemente deparei-me com uma questão que encimava uma crónica de opinião num jornal diário que colocava uma questão suficientemente simples para inviabilizar uma resposta concreta.

A referida questão colocava-nos perante a seguinte interrogação: “O que define o Estado Social?”.

De forma a não me sentir eu próprio condicionado na resposta que pretendo ensaiar com a presente dissertação optei, deliberadamente, por não efectuar a leitura do respectivo conteúdo, não fosse a “pena” resvalar para a repetição de argumentos, facilmente confundíveis com a noção de plágio.

O meu mote para a auto-resposta a esta questão remete, como não raras vezes acontece, para o documento da Constituição Portuguesa que no capítulo dos Direitos, Liberdades e Garantias estabelece o postulado da Liberdade de aprender e ensinar, da segurança no emprego, à segurança social e saúde, entre outros.

Cingir-me-ei, nesta abordagem, a estes pontos que se resumem no essencial à Educação, ao Emprego, à Segurança Social e à Saúde.

Assumo tal delimitação sem qualquer inocência na medida em que entendo que os fundamentos do Estado Social assentam precisamente nestes quatro pilares, sem que daqui resulte uma intenção dolosa de omissão da importância das demais.

Faço-o precisamente porque entendo que são estes, mais do que quaisquer outros, o “alvo” preferencial de parte das políticas de austeridade que, fruto do actual contexto de crise deixou de acordo com o meu entendimento, de conseguir distinguir entre a despesa pública considerada necessária e a acessória.

O que se passa é relativamente fácil de justificar, isto é, o Estado assumindo a incapacidade em controlar e reduzir a despesa do seu sector empresarial e da própria orgânica dos seus ministérios “aposta” largamente na redução em sectores onde precisamente deveria investir cada vez mais por configurarem matérias primordiais no seu leque de atribuições.

E esse é, lamentavelmente, o caminho quem se tem trilhado quando se pretende aumentar o número de alunos por sala apenas com o propósito de reduzir os custos com professores ou se restringe o papel da acção social escolar ao ponto de impedir em termos práticos que quem menos posses tem, possa prosseguir os seus estudos.

Ou quando se encerram hospitais porque se convencionou que a capacidade de outras unidades ainda não se esgotou, o que vale por dizer que ainda lá cabem mais doentes ou se agravam as denominadas “taxas moderadoras” tornando por vezes quase imperceptível a diferença entre o serviço público e o privado.

Ou mesmo quando se pretende aumentar a capacidade dos lares não pelo seu alargamento mais pelo aumento do número de idosos por quarto ou se limita a o valor da reforma para a qual legitimamente se trabalhou uma vida inteira já para não falar no corte dos respectivos subsídios.

Ou ainda quando se criam cada vez mais mecanismos que contribuem vertiginosamente para o desemprego acompanhado por uma diminuição clara da protecção uma vez chegado a essa “condição”.

Tudo isto tem um número e certamente também um custo – nada desprezável com toda a certeza – mas fundamentalmente um número que correspondente a um núcleo fundamental de cidadãos que se encontra numa situação comum de fragilidade seja pela condição de estudante, doente, idoso ou desempregado.

Este é o núcleo essencial daqueles que são a principal razão de ser do chamado Estado Social.

Qual pode ser então a resposta à questão inicial? Porventura essa resposta será a mais abrangente possível, ou seja, é tudo e não é nada, na medida em que nos remete para um enunciado constitucionalmente previsto que em termos práticos tem vindo a ser esvaziado de significado e por isso não admira, portanto, que tantos queiram ver revista a Constituição.

É que enquanto nela constarem determinados princípios que remetam para as funções primordiais do Estado haverá sempre alguém que se encarregará nos lembrar da sua existência e importância e, sobretudo, a necessidade do seu cumprimento. Assim vão as cousas.