domingo, 2 de dezembro de 2012

A genealogia de um povo - Parte II


No âmbito das políticas de recuperação económica do país, o Governo definiu a necessidade do fim de pelo menos quatro feriados.

Ora, sabendo-se que os feriados se dividem equitativamente entre aqueles que são de natureza civil e os demais de índole religiosa, surgiu naturalmente a ideia de partilhar da mesma forma o “sacrifício” - a bem da nação - de “deixar cair” em partes iguais um total de 4 datas correspondentes a feriados nacionais.

O Governo, como não podia deixar de ser, apressou-se logo a avançar com as suas próprias sugestões de eliminar o feriado do 5 de Outubro e o de 1º de Dezembro, para além de ter “avisado” os portugueses praticamente de véspera que o feriado “tradicional” do Carnaval também não teria lugar no calendário de 2012.

Já do lado da Igreja a coisa não tem sido fácil, face aos mecanismos internos decisórios subjacente a uma decisão de tão grande importância e que no caso vertente previa a supressão dos feriados do “Corpo de Deus” (feriado “móvel” celebrado em Junho) e da “Assunção de Maria” (a 15 de Agosto).

Independentemente da convicção de que num Estado laico a existência de feriados de natureza religiosa são, porventura, em si mesmo uma contradição com tal princípio constitucional e uma situação de “privilégio” face a outras confissões religiosas, a verdade é que a principal “dificuldade” revelada pela Igreja quanto à decisão a tomar se prende com uma situação muito concreta.

A questão é que a abolição de tais feriados colide frontalmente com o significado de cada uma das referidas datas para quem professe a religião cristã, facto que se coloca aquém e além da perspectiva bastante terrena subjacente à “necessidade” da referida abolição, que segundo nos “informam” se prende com o aumento da competitividade do país.

Desse ponto de vista o Estado parece ter uma posição mais confortável uma vez que não tem de “lidar” com questões de natureza divina e por isso mesmo uma qualquer decisão administrativa é suficiente para ganhar força de lei e de uma penada “passar à história” as duas datas avançadas inicialmente.

Para além das sérias dúvidas pessoais de que a eliminação de qualquer feriado constitua uma medida suficientemente eficaz para os objectivos a que se propõem, a verdade é que a análise a esta questão poderia e deveria colocar-se igualmente num plano diferente relativamente à perspectiva com que actualmente é analisado.

Esta perspectiva é aquela que nos remete para o significado de cada uma das datas em causa, ou seja, o motivo pelo qual em determinado momento se convencionou que, em tais dias, se deveria assumir como festivos.

Talvez esta associação à aparente “festividade” dessas datas seja o equívoco que determinou o seu fim, em relação ao distanciamento temporal crescente face ao momento em que as mesmas tiveram lugar, do qual resulta que não existam praticamente “testemunhos vivos” de uma delas (o 5 de Outubro) já para não falar da inviabilidade prática de tal suceder quanto ao evento que ocorreu a 1 de Dezembro de 1640.

Contudo, estas datas não adquiriram o seu significado próprio por representarem dias de festa ou de algum momento de carácter meramente profano, mas sim por “conduzirem” a nossa memória colectiva para dois momentos-chave da nossa História.

Tais momentos são os da Independência e os da Liberdade.

Independência face ao domínio estrangeiro que governou o país durante 60 anos e de Liberdade perante um regime de natureza autoritária do ditador Franco (o João) e de uma monarquia caduca inteiramente desligada da realidade da sociedade que supostamente dirigia.

Questiono-me, desta forma, se estes dois primados de qualquer sistema democrático não devem ser objecto de uma comemoração especial – ainda que em forma de feriado – que nos recorde a todos que em certos momentos da nossa vida é necessário lutar por objectivos que ultrapassam a natureza pessoal, firmando-se nos anseios e vontade colectiva de todo um País.

Sintomático desta desvalorização é que a mesma ocorra num momento de especial fragilidade do País, em que a sua soberania é colocada (ainda mais) em causa pela necessidade de intervenção externa.

A conclusão que podemos daqui retirar é que a Igreja Católica compreende que o fim dos feriados que lhe “tocaram” poderá representar uma nova “machadada” na crise de vocações que cada vez mais a afecta, em virtude da diluição do significado desses mesmos dias num qualquer normal dia de trabalho.

Em sentido contrário é líquido pensar que o Estado não só não valoriza este carácter quase imaterial associado às datas em causa ou, pior ainda, quererá por e simplesmente confiná-los ao nível meramente académico dos livros de História ou da curiosidade daqueles que ainda vão ocupando o seu tempo a reflectir sobre estas matérias.

Acontece que, à medida que vamos suprimindo os símbolos da nossa própria identidade estamos igualmente a deitar por terra as últimas “parcelas” da soberania de um país através da eliminação dos seus valores fundamentais, isto é, aqueles pelos quais vale definitivamente a pena lutar. Assim vão as cousas. 

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