De forma intemporal existe um postulado na igreja relativamente à indissolubilidade do casamento.
Salvaguardando as necessárias diferenças em relação à natureza eminentemente embutida de religiosidade com que a presente dissertação se inicia, a verdade é que a relação do Estado com os seus funcionários sempre foi entendida como uma espécie de casamento para toda a vida.
Esclarecido o paralelismo e sem querer deixar cair a simbologia que paira sobre este tema, também será licito concluir que há semelhança de certos rituais o referido “casamento” implicava que o “dote” seria integralmente apresentado pelo “noivo”.
Em termos práticos aquilo que sempre se verificou foi um contrato de trabalho celebrado entre duas partes em que uma – o trabalhador – se compromete a trabalhar para o Estado durante um número fixo de horas e a outra – o Estado – garante ao trabalhador um emprego para toda a vida e um "bolo recheado" de mecanismos de protecção social sem paralelo na actividade dita privada.
Por outro lado sempre pareceu não haver limite para o número de “casamentos” e por isso mesmo toda a estrutura foi “engordando” até ao ponto de alguém o apelidar de “monstro”.
Ora sucede que tal como acontece em muitos casamentos, depois do romance vem a acomodação, que no essencial normalmente resulta da ausência de estímulos ou o surgimento de novos desafios e, porque não dizer, da ausência de uma ameaça real à estabilidade emergente de uma realidade que ficara assente desde o primeiro momento não seria susceptível de ser alterada unilateralmente.
O problema é que essa realidade se foi progressivamente afastando da outra realidade, ou seja daquela que o cidadão que sendo igualmente trabalhador por conta de outrem está permanentemente sujeito às denominadas “regras do mercado” de trabalho.
Seja pela existência de um modelo corporativo assente numa forte estrutura de natureza sindical seja pela falta de “vontade” do Estado em se auto-disciplinar, a verdade é que este modelo vigorou de forma praticamente inalterada durante largos anos, seja ao nível central seja ao nível da Administração local ou regional, onde o descontrolo terá sido porventura ainda maior.
Acontece que em tempos de crise o Estado é normalmente “obrigado” a socorrer-se de medidas extraordinárias para fazer face a tempos igualmente extraordinários e para o fazer pode e deve optar por uma de duas vias (ou mesmo pelas duas).
A primeira é aquela que se revela mais eficaz e porventura menos dolorosa a curto prazo que é o de aumentar a receita através do aumento dos impostos directos e indirectos embora, tal como facilmente se constata, daqui resultem efeitos recessivos igualmente quase imediatos e com uma duração cujo termo se desconhece.
A segunda corresponde aquela que sempre se revelou mais difícil de transpor da cartilha de “boas intenções” de qualquer Governo para a linha da natureza prática, isto é, promover o próprio “emagrecimento” do Estado.
Esta cura de “emagrecimento” não é feita sem sacrifícios que, no caso vertente passam essencialmente por dois vectores, ou seja, a redução dos benefícios sociais dos funcionários do Estado aproximando o respectivo regime ao do regime privado ou pelo despedimento de uma parte nada irrelevante dos seus efectivos.
Até ao momento esta segunda via foi sendo evitada de uma forma mais ou menos discreta em virtude do impacto social daí resultante o que vale por dizer que dessa forma tem procurado obstar ao aumento do número e da intensidade da contestação social.
Uma vez chegados ao momento actual a convicção é que o assunto se tornou incontornável tendo presente que num primeiro momento se passou para a opinião pública que as medidas de austeridade visavam também impedir a necessidade de recurso aos despedimentos na função pública.
Não creio, contudo, que este princípio mutualista de repartição de sacrifícios venha a fazer “escola” e tal como quando se esgotam os anéis a seguir vão os dedos, provavelmente será precisamente este o passo seguinte para muitos funcionários do Estado.
Não me custa imaginar um Estado menos “pesado”, menos burocrático e essencialmente virado para as suas funções primordiais, o que me custa é perceber que os funcionários públicos surjam agora como o bode expiatório da falência de um sistema que foi sendo “alimentado” precisamente por aqueles que agora os condenam.
O “casamento” acabou de vez. Assim vão as cousas.