quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Roteiros - Setúbal aqui tão perto

Dando cumprimento à promessa de, volta e meia, deixar fugir o roteiro para fora da cidade de Lisboa sem, contudo, tanto dela nos afastarmos ao ponto de "obrigar" a pernoitar em tal local, seguimos agora até Setúbal, terra banhada pelo rio Sado do qual se separa em pleno oceano, tendo a península de Troia de um lado e a serra da Arrábida do outro.

Ora é precisamente em plena serra da Arrábida que se situa um dos locais mais enigmáticos para muita gente tal como o era para mim próprio, por se tratar de um local que quase todos conhecem ao longe a partir do miradouro do qual se vislumbra todo o espaço que a que me refiro, mas que poucos conhecerão por dentro.


Refiro-me ao convento da Arrábida e a razão pela qual este local místico parece inacessível a quem por ali passa reside no facto de se encontrar sempre fechado.


Por isso mesmo o "processo" de visita requere uma preparação prévia que pode revelar-se um pouco surreal.


Oficialmente o convento da Arrábida pertence à fundação Oriente e, à partida, será através do respectivo site que se procede à marcação das visitas guiadas ao local. Contudo, rapidamente se percebe que "não oficialmente" parece haver um outro "dono" do espaço, uma figura de carne e osso, por sinal a única pessoa que há vários anos habita em total isolamento o espaço do convento, como tantos outros, ainda que usando a vestimenta de monges, o fizeram.


A verdade é que parece nada ser possível fazer no que à visita diz respeito sem que tenha de passar pelo referido curioso monge dos tempos modernos, podendo mesmo revelar-se uma experiência desagradável ter de "aturar" os tiques acumulados ao longo dos anos que acentuam a ideia de que o verdadeiro dono é ele próprio é, nessa medida, há que se comportar de acordo com os ditames que o próprio determina no que à visita diz respeito.



Com tal enquadramento o melhor mesmo é arranjar um grupo considerável de amigos ou familiares
que nos acompanhem aproveitando dessa forma a "benesse" de, durante uma hora e pouco, termos a possibilidade de aceder ao espaço do convento.

A verdade é que vale bem a pena fazê-lo e sempre fica qualquer coisa para contar mais tarde.


Desde logo o enquadramento sobre o mar é absolutamente deslumbrante acrescendo a este facto uma percepção sobre as condições de vida de quem ali "habitou" em tempos idos, destacando-se em particular a capela mas, sobretudo uma enigmática estátua em posição de cruz de São Francisco, repleta de simbologia própria desta ordem religiosa.

O resto é fundamentalmente composto pelos espaços de reclusão dos monges por entre uma labiríntica escadaria, destacando-se a cor branca das paredes, aquela que mais se destaca a quem de longe aprecia a vista sobre o conjunto arquitetónico do convento.

Terminada a visita a este belíssimo espaço é tempo de rumar à cidade através das serpenteantes estradas da serra da Arrábida, sempre ladeadas pela luxuriante vegetação típica da região e por outro pela profundas encostas que invariavelmente terminam em belas praias que banham a serra ou sobre um mar que, visto dali, parece ser infinito.

É aí, na cidade, que vamos encontrar outros dois locais cuja visita será obrigatória ou, pelo menos, recomendável.

O primeiro desses locais corresponde ao Museu do Trabalho Michel Giacometti, um daqueles estrangeiros a quem Portugal muito deve, ainda que essa consciência seja hoje bem mais real do que durante a vida desta personagem que se apaixonou por este país ao ponto de ter dedicado boa parte da sua vida à pesquisa etnográfica de gentes, tradições, profissões e, com especial relevo, uma recolha sonora dos sons desta terra, património imaterial de Portugal, cuja reprodução nos dias de hoje é praticamente impossível por ter deixado de ser herdada entre as sucessivas gerações, razão pela qual ouvir entoar certos cantares equivale quase a ver imagens passadas de um qualquer animal extinto.


Por isso mesmo este interessante museu herdou o nome de Michel Giacometti, e nele é possível encontrar referências às raízes piscatórias e da industria do peixe de Setúbal, mas igualmente ao comércio local, com representações de lojas, artes e ofícios locais.

Este é um local especialmente focado no ensino de diversas artes e ofícios desaparecidos (ou a caminho de tal....)  e, por isso mesmo, é não raras vezes visitado por escolas da região.

E se este roteiro começou por um convento assim há-de terminar noutro, de características e traços bem distintos e sem necessidade de marcação prévia ou de nos submeter ao Ius Imperium do seu improvável "guardador".

Este convento, de Jesus de seu nome é, em bom rigor, um duplo local de visita, por se tratar simultaneamente de uma igreja que, claro está, "responde" pelo mesmo nome.

Sempre me habituei a passar por este local e tristemente constatar que quase sempre se encontrava encerrado, situação a que não seria indiferente o estado de conservação exterior que se presume fosse replicado para o interior.

E era de facto uma pena porque a traça arquitetónica vincadamente Manuelina traz-nos à imagem qualquer coisa que é possível vislumbrar noutros locais de relevância histórica incontornável, desde logo a Torre de Belém ou o Mosteiro dos Jerónimos, ou ainda o convento de Cristo em Tomar e o Mosteiro da Batalha, ainda que com uma dimensão consideravelmente mais modesta.

Aberta a porta anteriormente franqueada e recuperado o seu esplendor a Igreja e Convento de Jesus em Setúbal são dois espaços imperdíveis, sendo que a parte do convento encerra um núcleo museológico bastante interessante, incluindo peças que existiam na Igreja e convento original, embora se note que ainda exista no seu interior uma vasta área para "explorar", isto é, sem qualquer uso ou finalidade percetível.


Roteiro sem gastronomia não é roteiro, algo que não se apresenta como tarefa fácil em Setúbal tão grande é a variedade e a qualidade da oferta.


Mas como a vida é feita quase sempre de escolhas então que assim se conserve e, por isso mesmo, se a escolha for pelo peixe fresco então o pequeno restaurante O Batareo, situado na entrada sul da cidade é a escolha ideal, se a opção recair pelo prato "tradicional" de Setúbal, o famoso choco frito, então no extremo oposto, mesmo à entrada da serra da Arrábida, podemos encontrar e escolher sem receios o restaurante Leo do Petisco, se bem que a probabilidade de existirem longas filas de espera seja altamente provável se a hora do repasto coincidir com aquela que habitualmente o comum dos mortais entendeu designar de "hora de almoço" ou "hora de jantar".


A qualidade da opção justifica, ainda assim, a espera.


Os roteiros hão-de continuar em 2017.

domingo, 20 de novembro de 2016

Roteiros - A Madragoa e os seus museus

Desenhar um novo roteiro é um exercício que não requer qualquer esforço físico mas tão-somente o gosto de definir para nós próprios um objectivo que se prende única e exclusivamente com o gosto de conhecer novas coisas mas, porventura ainda mais, o interesse em procurar (para não dizer encontrar) as referências culturais que se enquadrem no contexto de cada roteiro.

Por isso mesmo, o maior prazer reside precisamente em perceber por essa via que bem perto dos locais onde habitualmente passamos de forma apressada podemos encontrar verdadeiros "tesouros" de interesse cultural, mas igualmente gastronómicos, talvez porque habitualmente não façam eles próprios parte dos roteiros oficiais, aqueles a que o turista "tradicional" visita, como se nada mais houvesse para conhecer.

Não pretendo, contudo, afirmar que sejam locais desconhecidos. Apenas que merecem a pena ser verdadeiramente conhecidos.

Mais interessante ainda será o facto de, não raras vezes, tais locais encontram-se localizados nos denominados bairros típicos de Lisboa, que por si só merecem - e porventura hão-de mesmo merecer - que se lhes dedique um roteiro.

Tal é caso do Bairro da Madragoa onde, entre outros exemplos relevantes de locais culturalmente relevantes, se encontram localizados o Museu da Água e o Museu das Marionetas.

O primeiro que é referido, o Museu da Água, é parte integrante de uma rede mais vasta de locais relacionados com a água em Lisboa, dos quais se haverá de referir noutros roteiros, e que impressiona pela quantidade de máquinas de dimensões consideráveis que nos remetem para a forma como a água chegava (e era contada) à casa dos lisboetas, mas também a sua relação com o aqueduto das águas livres, essa imensa "auto-estrada" de canais de pedra que dava de beber à capital.

Tratando-se de um espaço um pouco à margem da cidade, é possível efectuar uma visita de forma absolutamente tranquila, sem qualquer risco de "tropeçar" num esquadrão de turistas.

É um local que funde a vertente cultural com a lógica educacional, com vários postos interactivos para as crianças (e não só) poderem dar azo à vontade de perceber um pouco melhor a mecânica da água.

Um pouco mais em frente, já bem no centro da Madragoa, situado no Convento das Bernardas encontramos o Museu da Marioneta.

Confesso que "esperava" relativamente pouco deste espaço, porventura mais por preconceito sobre a relevância cultural de algo que, afinal de contas, é representado por bonecos mas, mais uma vez, ficou provado que preconceito e ignorância são "marido e mulher" no que toca a julgamentos precipitados e, por isso mesmo, não hesito em afirmar que se trata de um dos melhores museus da cidade de Lisboa.

Muito mais do que os tais bonecos é um local de história com centenas de anos em que, à falta de qualquer outra forma de registo, a representação era feita com recurso às mais variadas formas de imagens em forma de marioneta e que não se esgotam, bem pelo contrário, a uma perspectiva infantil dessa mesma representação, remetendo para a simbologia e rituais religiosos, o medo, a comédia, a sexualidade, etc.

Tudo isto representado por um acervo de uma riqueza que não se antecipa à entrada, com elementos de todos os "cantos do Mundo".

O contexto envolvente do Convento das Bernardas acaba por ficar um pouco desfavorecido por não ser absolutamente evidente nem tão-pouco haver uma forma de "convite" a percepcionar esse espaço, algo que poderia, porventura, ser optimizado.

Não fazendo parte do roteiro, por não se tratar de um espaço aberto ao público, mas por situar naquela mesma zona entendo ser oportuno referir-me ao edifício onde actualmente se encontra instalada a Embaixada de França, o Palácio de Santos-o-Velho, uma preciosidade que pude visitar no contexto do "Lisbon Open House", oportunidade única para visitar alguns espaços - como este - que "carregam" nas paredes e interiores partes relevantes da história de Portugal.

Entre as muitas riquezas existentes no seu interior, saliento o icónico tecto em forma de cone, decorado com peças de loiça que já ali se encontravam antes do terramoto de 1755 e que, quis o destino, assim se conservassem imaculadas, apesar de tudo ruir à sua volta.

Para se jantar (ou almoçar) não é preciso sair da Madragoa, tão repleta é a oferta de restaurante típicos localizados naquela zona.

A escolha recaiu no pequeno, castiço mas verdadeiramente bom restaurante a "Varina da Madragoa" onde temos tudo aquilo a que temos "direito" num local como estes: a simpatia do dono, a evidente empatia com os clientes, as referências à antiguidade do espaço na decoração, nos azulejos na parede, mas também nos velhos recortes de jornais que nos lembram que por ali passaram José Saramago, entre outros.

A ementa é variada, mas o bacalhau é rei.

Para finalizar o dia e andando apenas alguns metros encontramos o bar "Matiz Pombalina" um pequeno e intimo espaço ideal para conversar com uma decoração sóbria e, claro está, os arcos em tijolo que remetem para a antiguidade mal disfarçada do espaço.

Só podemos estar gratos por podermos usufruir de locais como estes, assim os queiramos descobrir e conhecer.







sábado, 29 de outubro de 2016

Roteiros - Alfama é tudo isto

O roteiro de hoje levar-nos-á a uma das mais tradicionais zonas de Lisboa onde é possível "desenhar" um percurso que em si mesmo justificaria a vinda a este local sem necessidade sequer de referir pontos culturalmente relevantes, sendo bastante para o efeito passear pelas pitorescas e ruas cheias de vida do bairro de Alfama.



Apesar de nem sempre bem conservadas e particularmente nalguns locais as casas apresentarem sinais de algo que alguns consideram com "arte urbana" e que outros tendencialmente postulam de "vandalismo" a verdade é que dificilmente a pintura original deste local teria vestígios dos denominados grafitis, pelo que cada um os catalogue como quiser sendo que, pessoalmente, prefiro a cor branca, não fosse esta cidade de Lisboa também ela a cidade branca.

Mas como o objetivo destes roteiros é, antes de mais, proporcionar sugestões culturais e, já se percebeu, gastronómicas, a quem simultaneamente dedique um pouco do seu tempo à leitura dos mesmos e, mais ainda, tenha gosto por conhecê-los, então não há como fugir ao assunto e, sem demoras, passar ao que verdadeiramente importa.


Por isso mesmo o roteiro tem o seu início nas Portas do Sol, local onde aliás se pode desfrutar de uma das mais belas vistas sobre o Tejo que a cidade de Lisboa tem para oferecer, em cujo largo se situa um palácio do século XVIII, o palácio Azurara, onde se encontra instalado o Museus das Artes Decorativas.


O interessante deste museu é que reúne um riquíssimo acervo pertencente à coleção Ricardo Espírito Santo Silva mas igualmente o facto de que esse mesmo acervo é o resultado do trabalho de recuperação e restauro levado a cabo pela escola com o nome do seu fundador e que tem deixado a sua marca de qualidade em muitos outros locais pela cidade.


Há, contudo, sinais de preocupação com este espaço e esta coleção em virtude dos problemas financeiros, cuja natureza não cabem nestes roteiros, que envolvem o Grupo BES/Novo Banco, havendo o risco de, num futuro próximo, a riqueza que agora é pública se tornar objecto de usufruto privado em virtude da alienação da colecção para saldar outras dívidas.

Admito, portanto, que este espaço também possa constituir uma forma de alerta para, por via da divulgação, impedir que este excelente museu deixe a médio prazo de o ser, impedindo não apenas a possibilidade de o visitarmos mas igualmente a continuidade de uma actividade de mérito inquestionável que cabe à escola de restauro.

Um pouco mais "abaixo" junto à estação de Santa Apolónia encontramos o Museu do Exército, um local relativamente datado, entenda-se no qual se percebe não são feitos investimentos de modernização há bastante tempo, mas que acaba por ter nesse aspecto talvez o seu maior charme.

Ou seja, o facto de parecer aos olhos do visitante como que se tivesse parado no tempo é o aditivo necessário para imaginar que tudo aquilo que podemos encontrar no seu interior e que, no essencial - e não é pouco - percorre a história militar portuguesa e, em particular, a participação do CEP na 1ª guerra mundial, se encerra temporalmente naquele espaço, incluindo o próprio edifício, o que em bom rigor até fará sentido, tendo em conta que a partir de 1918 praticamente deixou de haver história militar em Portugal.

Entre todo o seu espólio é, no entanto, nas suas paredes que fica inscrita aquela que para mim constitui a maior riqueza deste museu e em particular as gigantescas pinturas do mestre Sousa Lopes, o artista que retratou a participação portuguesa na 1ª guerra mundial e que, além do mais, tem uma ligação familiar a um conterrâneo do meu pai e a alguém (já falecido) que compunha o "quadro" de pessoas que preenchiam os dias passados em casa dos avós durante as longas férias de Verão.


É um pouco isto que este museu nos traz, isto é, memórias de um passado que já não volta, do qual resta apenas aquilo que o tempo se encarregou de conservar.

Se o roteiro começou em Alfama então em Alfama há-de acabar.

E por isso mesmo o local ideal para que isso aconteça é no restaurante "A Baiuca".

Nota prévia, convém marcar lugar.


E porquê? Haverá então que ler o que se seguirá.


Este típico restaurante de fados em Alfama terá cerca de 5 ou 6 mesas, que não levam mais do que 8 pessoas e é aqui que começa a diversão.


Normalmente é um pressuposto em qualquer restaurante que não tenhamos de partilhar essa mesa com alguém que nem remotamente conhecemos. Aqui não, chegamos e sentamo-nos onde houver lugar. O resto é o que as pessoas (quase todos estrangeiros) à mesa quiserem que seja, isto é, quase sempre acabam a noite a falar uns com os outros como se fossem amigos de longa data.


Mas o próprio conceito de "acabar a noite" não tem o mesmo significado que terá noutros contextos.

Dificilmente será possível encontrar outro local onde seja possível estar sentado à mesa a partir das 20h e só sair quando se quiser, porque ninguém nos dirá em algum momento que o nosso tempo acabou e há mais pessoas à espera.


Não. Os donos fazem questão de não "despachar" ninguém, porque toda a refeição acaba por se prolongar por várias horas.


Repete-se então a pergunta. E porquê?


Porque, diz a tradição, que enquanto se canta o fado se faça silêncio.


Ora como quase toda a noite o restaurante é visitado por diferentes fadistas que, num tom verdadeiramente popular, entoam versos com mais ou menos desafinação acompanhados à guitarra num dos cantos deste pequeno espaço, difícil mesmo é estar simultaneamente a servir refeições e a ouvir fado ao mesmo tempo.


Em boa verdade é até necessário esperar algum tempo pela primeira pausa - que não se sabe ao certo quando virá - para que comecem a circular os pratos pedidos à chegada.


De resto não há ninguém que não cante, entre convidados, o dono (que abre as "hostilidades"), a esposa, a cozinheira, algumas figuras tão patuscas que entre "atuações" esperam novamente a sua vez à porta com um cigarro numa mão e um copo de vinho na outra.


No final a conta não é pequena nem excessivamente grande, mas como nos dizia a dona/fadista, ao despedir-se de nós com direito a dois beijinhos, "eu não digo a ninguém para sair, por isso tenho os mesmos Clientes toda a noite". Nem mais.


Quando ouvirem dizer "Alfama é tudo isto". Acreditem que é verdade.











sábado, 15 de outubro de 2016

Índia - Epílogo

Quando alguém decide fazer férias num território distinto do seu próprio sabe de antemão que a inexorável passagem do tempo há-de determinar que num determinado momento haverá que fazer o caminho inverso ao que tomou inicialmente.

A azáfama típica desse momento leva, normalmente, a uma tentativa - escusada, diga-se - de apressar o regresso, como se o objectivo fosse mais do que nunca regressar a casa, indiferentes a tudo aquilo a que os dias antecedentes haviam proporcionado.

Mas é também o momento do balanço desses mesmos dias, algo que a espera numa qualquer sala de aeroporto proporciona, após os inevitáveis olhares pelas lojas existentes nestes locais procurando uma compra de última hora, rapidamente se percebendo que o custo de qualquer artigo em tais lojas é consideravelmente superior àquele a que teria sido possível adquirir anteriormente o referido artigo mas que, por inconsciente decisão, se optou por diferir para momento posterior à sua compra.

Há, contudo, o outro lado da referida reflexão, o de "olhar" para o que representou a viagem.

Se receios havia antes da mesma, sobretudo devido ao preconceito que normalmente acompanha qualquer viagem para um destino "exótico", rapidamente esses receios foram desaparecendo à medida que se foi percebendo que muito para além de tudo aquilo que evidentemente colide frontalmente com os nossos (pre)conceitos de organização de uma sociedade está um país fascinante, capaz de mudar a nossa perspectiva sobre o referido conceito de sociedade e, nessa medida, tornar-nos pessoas de certa forma diferentes daquela que dias antes havia aterrado em solo indiano.

Um país com um nível de segurança assinalável (independentemente de não ser fácil passear isoladamente nas ruas, mas por motivos totalmente distintos), para o qual não é necessária qualquer vacina previamente à viagem, e onde as pessoas recorrente pedem para tirar connosco fotos ou as selfies da moda, sendo perceptível o gosto com que o fazem tornado impossível recusar tal pedido ainda que não seja perceptível a que título é que o fazem.

Não é o país onde se ouve o som celestial da cítara pelas ruas típico dos programas de viagem ou das pessoas a dançar com uma alegria e ingenuidade inusitada como nos filmes de bollywood.

É o país das pessoas comuns, de uma religiosidade profunda, do minúsculo comércio de sobrevivência, ou como diria o filósofo Epicteto pessoas que suportam a condição humana e inumana cultivando uma forma de indiferença a tudo o que não depende de si próprio.

A publicidade turística indiana anuncia o país como sendo a "Incredible Índia". E é isso mesmo, incrível.

Por todas as cidades onde passámos, Goa, Varanasi, Orchha, Fatehpur Sikri, Agra, Nova Dehli, Jaipur, Kathmandu e Pokhara (estas duas ultimas no Nepal), todos hotéis onde dormimos muito mais do que descansámos (7 ao todo) fica um sabor de algo novo, quase sempre majestoso mas indiscutivelmente belo, sempre surpreendente.

É isto a Índia. A tal "Incredible Índia".

Agora, na hora do regresso, em que o desejo de rever aqueles que nos são mais próximos e voltar à normalidade das nossas vidas parece tornar-se cada vez mais realidade, é tempo olhar para trás e pensar: cumpri o sonho de ver o Taj Mahal, vi o nascer do sol sobre os Himalaias e presenciei o pôr do sol nas águas quentes da Goa "portuguesa".

Cansado? Não. A pergunta seria antes: posso repetir tudo já amanhã?





sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Índia - Dia 13 (Goa)

A opção pela extensão do programa de visita ao território de Goa revelou-se, independentemente do reduzido tempo de estadia, perfeitamente acertada.

Goa é uma zona da Índia absolutamente fascinante, com evidentes disrupções relativamente às restantes zonas visitadas mais a norte.

Mas, sobretudo, o que fica é a imagem da luxuriante vegetação, um povo que extravasa simpatia e com uma abordagem aos estrangeiros que possibilita um maior a vontade para quem passeia na rua, uma qualidade de vida claramente acima da média, bons restaurantes onde é possível, embora de forma não geral e com um custo "inflacionado", comer carne de vaca.

Contudo, aquilo que mais apela a visitar esta terra é a sua ligação histórica a Portugal.

Não tenho a certeza que as actuais novas gerações de goeses tenham noção dessa ligação e a razão pela qual os apelidos tradicionais indianos aqui são substituídos por Nunes, Sousa ou Costa (um sacerdote "lembrou-nos" que o actual primeiro-ministro de Portugal tem ascendência goesa...), e tenho ainda mais dúvidas que as futuras gerações consigam manter viva essa lembrança.

No entanto, tudo o resto esta lá há vários séculos para manter essa recordação dos tempos imemoriais da aventura de Portugal por mares tão distantes.

E essa imagem é, para um português, um motivo de grande orgulho, ao perceber que naquele território há monumentos que são património da humanidade da Unesco, que num país essêncialmenfe hindu ou muçulmano existem diversos espaços onde se erguem no topo cruzes, símbolo da religião cristã por via da influência portuguesa.

Assim, sucessivamente, os nossos caminhos e, diga-se, de bastantes indianos e pessoas de outras nacionalidade, cruzam-se com a magnífica Sé Catedral do século XVII, a basílica do Bom Jesus que remonta ao século XVI sendo a mais importante igreja de Goa, onde descansam os restos mortais de São Francisco Xavier,  ou a igreja de São Francisco de Assis igualmente do século XVII, a capela de Santa Catarina, construída no preciso ano da entrada na cidade de Afonso de Albuquerque e as ruínas da antiga igreja de Santo Agostinho, do início do século XVII, que impressiona pela percepção da monumentalidade que o espaço teria antes do desleixo, o vandalismo e até a decisão de demolição por parte do governo português em meados do século XIX a transformarem num vasto espaço arqueológico digno de ser visitado.

Eis a velha Goa.

É impossível não sentir uma sensação de orgulho profundo pela nossa história. Pela história de um pequeno território - incomensuravelmente mais pequeno do que a Índia - que um dia desbravou mares, cavalgou a ignorância, desafiou os medos, para descobrir e deixar a nossa marca em mundos tão diferentes daquele que nós próprios conhecíamos.

Mas para que não percamos a noção de que os tempos hoje são outros seguiu-se a visita a um dos mais importantes templos hindus dedicados à deusa Shiva, o Shri Manguesh Templo (o tal onde nos foi recordada a ascendência do PM), cujo interior ricamente decorado a prata é incomum pelo seu fausto, acedendo-se ao seu interior, como habitualmente, descalço, tarefa nada fácil tendo em conta o calor esmagador, que escaldava literalmente a planta dos pés.

Em seguida uma visita que se impunha na terra dos chás, uma espécie de jardim botânico onde imperam árvores ancestrais, plantas medicinais e especiarias, com direito a almoço e tudo.

O passeio por Goa terminaria com um fantástica vista sobre o mar e da respectiva costa a que se acede por uma marginal com o nome bem português de Dona Paula, para finalmente desfrutar de um passeio numa das mais frequentadas praias de Goa, a praia Miramar, onde dezenas de pessoas, famílias inteiras, passeavam pelo seu extenso areal.

O dia haveria de terminar com uma excelente amostra da gastronomia goesa, num restaurante junto à praia cujo proprietário apresenta orgulhosamente no cartão de visita o apelido Magalhães. Há dúvidas sobre o significado da nossa presença neste território?

Que outra forma poderia existir para marcar a despedida do maravilhoso país que é a Índia numa Goa cuja portugalidade nos anuncia que o regresso a Portugal está marcado para o dia seguinte, não sem antes aterrar, ainda que por pouco tempo, noutra cidade mítica na história de Portugal: Bombaim, hoje rebaptizada de Mumbai.

Por isso mesmo amanhã escrever-se-á o epílogo desta inolvidável viagem.







quinta-feira, 13 de outubro de 2016

Nepal/Índia - Dia 12 (Kathmandu e Goa)

O dia ainda por nascer anunciou o final da estadia no Nepal, mas ainda estava guardado um novo momento especial.

Há medida que o avião fazia o seu percurso ascendente, o gigante Evereste surge magnânimo no horizonte, erguendo-se acima da própria altitude do avião, como que a saudar e ao mesmo tempo a despedir-se de nós, ladeado por toda a cordilheira dos Himalaias que se estende a perder de vista, acompanhando, como se de uma corte se tratasse, todo o trajecto do avião, para lá do próprio Nepal.

Era o momento da despedida em direcção a Nova Deli para dali rumar a Goa, o último destino deste roteiro.

Pelo meio um sobressalto mais ou menos comum para quem tem de apanhar um voo de ligação, isto é, a possibilidade de perder o voo seguinte, em virtude do reduzido tempo de escala em Nova Deli, o que obrigou a uma correria após a aterragem do avião da Nepal Airlines.

Tudo correu pelo melhor e nem se diga que a sucessão de formalismos ao entrar na Índia (tratava-se para todos efeitos de uma reentrada com tudo o que isso implica) constituíram um obstáculo adicional. Afinal de contas estava-me reservado o lugar 22 no avião da Vistara (companhia aérea local). Curioso....

As primeiras impressões de Goa permitem concluir tratar-se de uma região substancialmente diferente das demais regiões anteriormente visitadas na Índia.

Este estado situado no sul da Índia é fortemente marcado por um clima tropical, com traços que recordam algumas zonas no Brasil, com uma grande profusão de coqueiros, tal como a terra avermelhada lembrará a alguns o continente africano, sendo igualmente verdade que a tez dos goenses é igualmente mais escura do que no norte da Índia.

Mas aquilo que mais impressiona e até comove é constatar que neste local, tão distante do nosso, existem inúmeras referências a Portugal, seja nas diversas igrejas cristãs, claramente datadas do período colonial, seja na referência constante a nomes e apelidos portugueses.

Mas o ponto alto do dia estava reservado para o final.

Hoje pude ver, numa das suas muitas praias, o pôr do sol em Goa.

As águas quentes e agitadas do Índico tornaram especial estas primeiras horas em Goa, no mesmo local onde outros se banhavam, brincando que nem crianças que viam o mar pela primeira vez, quase sempre com trajes que dificilmente se associam a fatos de banho.

A praia, bastante ventosa, era percorrida de uma ponta à outra, por dezenas de pessoas que aproveitavam o final de tarde e aquele sol maravilhoso que se despedia de todos pouco a pouco.

Amanhã, último dia completo desta jornada na Índia, vamos percorrer os caminhos da presença portuguesa em Goa.



quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Nepal - Dia 11 (Phokara e Kathmandu)

Hoje assisti ao nascer do sol a reflectir a sua imensa luz sobre os Himalaias.

Em bom rigor poderia terminar por aqui o registo de mais um dia em território nepalês, porque um dia que bem cedo se iniciou - 6 horas da manhã - permite um avistamento de tamanha beleza não precisaria de muito mais que pudesse torná-lo de alguma forma ainda melhor.

Contudo, a minha "missão" é transformar esse e os restantes momentos vividos numa experiência literária, ainda que reconhecidamente modesta, que permita a que a lê percepcionar o melhor possível as sensações que resultam da vivência pessoal de uma viagem que, até ao momento, se tem revelado  absolutamente inolvidável.

Nessa medida o melhor será mesmo começar por referir que a vinda ao Nepal, ainda que de curta duração, não estava inicialmente prevista tendo surgido a possibilidade da sua inclusão, com um custo adicional que claramente justificava essa opção, na certeza de que a probabilidade de, num futuro mais ou menos imediato, agendar umas férias neste território não seria propriamente exequível.

A favor, a possibilidade de conhecer um novo país, em concreto, uma cidade mítica, a capital Kathmandu.

Contra, o facto de não haver certeza absoluta da situação da cidade, nomeadamente dos seus principais pontos de interesse, em consequência do fortíssimo sismo ocorrido no ano de 2015.

A verdade é que a opção se revelou totalmente acertada embora, curiosamente, a grande surpresa tenha sido a visita à cidade de Pokhara.

Se o dia de véspera já antevera a enorme beleza natural deste local, nada nos prepara para a imagem que se nos depara ao ter a possibilidade de ver o nascer do sol sobre os Himalaias, nomeadamente sobre uma das suas maiores montanhas, o Annapurna.

A partir de um terraço situado no monte Sarangkot, a cerca de 1400 mts de altitude, a imagem que vai surgindo aos nossos olhos à medida que o sol vai nascendo é inacreditavelmente bela.

Aos poucos o majestoso, silencioso, sagrado e até mesmo assustador Annapurna vai-se revelando, juntamente com a sua neve branca que, durante uns momentos, assume um tom rosado, parecendo que aqueles 8000 metros de altitude se erguem tão próximos de nós não parecem maiores do que a montanha a partir da qual presenciamos tão belo espectáculo da natureza.

Cada novo minuto é uma nova revelação e até as nuvens parecem querer ajudar a compor o memorável momento que se vivia, guardando para mais tarde o encerrar das "cortinas", como se a montanha fosse afinal um animal selvagem que apenas se deixa ver quando o próprio assim o entende.

Era então tempo de deixar aquele local e aquelas imagens impossíveis de descrever com a fiabilidade que o momento exigiria.

A despedida em beleza de Pokhara aproximava-se não sem antes podermos participar em mais um momento místico, num templo dedicado ao Deus Vishnu, o Deus protector, tendo tocado na estátua em sinal de respeito e sido, em seguida, brindado com o toque de tinta (tika) no centro da testa que, como se fora uma bênção, representa para os hindus a fonte da energia, a terceira visão.

Agora sim era tempo de nos despedirmos de Pokhara, um experiência que não nos poderia ocorrer no momento da decisão de fazer incluir ou não o Nepal no roteiro de viagem.

Dispensarei as referências à longa viagem de regresso, sabendo-se de antemão que os 200 kms a que me refiro estão longe de ser percorridos num curto espaço de tempo.

À chegada à capital que, diga-se, tem 2,5 milhões de habitantes, isto é, pouco menos de metade da totalidade da população do Nepal, revestia-se de alguma ansiedade uma vez que o tempo disponível para a conhecer era relativamente escasso, sobretudo tendo em conta que o sol se põe relativamente cedo.

Ainda assim foi possível visitar dois dos principais marcos culturais da cidade de Kathmandu, o tempo hindu de Pashupati, datado do século IV d.c., onde se fazem igualmente rituais de cremação, e onde é possível visualizar templos dedicados a Shiva, Deus da criação e da destruição, e Vishnu, anteriormente referido.

É também neste local que se podem encontrar dezenas de macacos, autênticos donos de todo aquele espaço, que reagem agressivamente se confrontados com um olhar por parte daquele que lhe sucedeu na evolução, e os santos, figuras humanas, dignas de postais ilustrados, que vivem na mais absoluta indigência e que se vestem e pintam de uma forma que apela ao mais profundo misticismo destes locais.

Noutro local da cidade a visita seguinte determinou a mudança de religião para o budismo no templo de Bouddhanath, onde se ergue ao centro uma imponente Stupa, edifício totalmente maciço onde existe sempre no seu interior uma relíquia, seja um osso, seja um livro sagrado.

Este edifício do século VI d.c. ficou parcialmente destruído com o terramoto, estando agora na fase final de reconstrução.

Trata-se de um local que é maioritariamente frequentado por monges tibetanos, fugidos da perseguição chinesa no Tibete, que ali formaram nos tempos mais recentes uma forte comunidade.

É tempo de nos despedirmos do Nepal, local a que apetece voltar um dia mais tarde para melhor o conhecer, e ir ao encontro de um território, novamente em solo indiano, que faz parte da história de portugal, e que remete para o ano de 1510 e ao almirante Afonso de Albuquerque.

Não sem antes repetir: hoje vi o sol nascer sobre os Himalaias.













terça-feira, 11 de outubro de 2016

Nepal - Dia 10 (Kathmandu e Pokhara)

A breve estadia no Nepal permite confirmar algumas "suspeitas" da noite anterior, isto é, trata-se de um país com uma melhor distribuição de riqueza, não se percebendo de forma tão notória sinais de pobreza extrema como na Índia, sendo evidente uma maior limpeza das ruas, poucos animais a circular por essas mesmas ruas e até algum nível de planeamento urbanístico (à falta de melhor palavra).

Contudo, a falta de movimento de pessoas e viaturas nas ruas será provavelmente ilusório uma vez que nesta altura decorre no Nepal um período de férias de duas semanas, devidas a celebrações religiosas, o denominado Dashain, durante as quais se celebra de forma bastante notória esse período seja porque quase todas as mulheres e meninas (os homens nem tanto) se vestem de forma quase idêntica, com trajes vermelhos vivos e engalanadas com adereços alusivos às festividades, seja porque basicamente todos os serviços públicos estão fechados durante esse período.

É também notório que o tempo no Nepal não é tão quente e com uma humidade relativa consideravelmente mais baixa do que na Índia facto a que, presumo, não seja alheio este território se situar quase totalmente acima dos 1000 metros de altura e estar literalmente rodeado das maiores montanhas no mundo.

Ficando a visita a Kathmandu propriamente dita para quarta-feira, dirigimo-nos à cidade de Pokhara, que distam uma da outra em cerca de 200 kms, nada que não se faça em... 6 horas.

E isto porquê se nem há trânsito conforme atrás se referiu?

Junte-se uma estrada que frequentemente parece mais uma picada, a um ziguezaguear permanente pela montanha e uma viatura que raramente "mete a quinta" e facilmente se perceberá o porquê.

Felizmente o trajecto é absolutamente deslumbrante, sempre por montanhas repletas de densas florestas ou com vastas plantações agrícolas (em especial o arroz) e grandes vales banhados por rios cujo caudal provém dos Himalaias, para se compreender que não pode existir qualquer monotonia numa viagem que permite observar as luxuriantes paisagens do Nepal, sempre com as montanhas em fundo, autênticas rainhas do horizonte.

Pokhara é uma cidade surpreendentemente turística, por se situar numa zona que permite usufruir de um conjunto de facilidades, nomeadamente desportos radicais, trekking pelas montanhas, sendo também "vizinha" de uma das montanhas mais procuradas pelos alpinistas, o Annapurna, apesar deste se esconder grande parte do dia tal como a sua abundante neve atrás das espessas nuvens.

Por tudo isto Pokhara acaba por ter uma oferta hoteleira e de restauração bastante assinalável e de qualidade acima da média, onde até é possível comer porco ou optar por um restaurante de outras latitudes (no nosso caso a escolha recaiu, e ainda bem, por um Coreano).

Mas não foram esses os motivos que nos trouxeram até Pokhara.

O que verdadeiramente nos trouxe foi a possibilidade de usufruir da sua abundante riqueza natural, entre a qual se destaca fortemente o seu enorme e limpo lago (o segundo maior do Nepal), ladeado por uma imensa floresta, onde reina o silêncio ou onde é possível avistar um deslumbrante pássaro de asas azuis, de nome Kingfisher, curiosamente o nome da principal cerveja da Índia.

Outros são os motivos para a vinda a Pokhara, mas apenas serão revelados amanhã e para isso será necessário acordar às 04:30 da manhã.

Talvez alguns entendam que estes "sacrifícios" (fazer horas seguidas de carro ou levantar cedíssimo) não serão verdadeiras férias. Mas acreditem e acho que todos sabemos mais ou menos isto: quando estamos onde queremos e com queremos estar, não há nada mais recompensador do que ter umas férias assim.




segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Índia/Nepal - Dia 9 (Varanasi e Kathmandu)

A visita à cidade de Varanasi e a possibilidade de desfrutar de toda a vida e espiritualidade desta terra que, afinal de contas, é santa para os hindus marca, simbolicamente, o fim da viagem pelo norte da Índia e o início de um novo roteiro que nos há-de levar em seguida ao Nepal e, por fim, ao sul da Índia, mais concretamente a Goa.

Por isso, o dia de hoje foi dedicado - se é que assim se pode dizer - a gozar um pouco mais do "vale dos lençóis" e de alguma leitura junto à piscina do hotel para, em seguida, entrar no frenesim das caminhadas pelos aeroportos, naquela sempre entusiasmante tarefa de fazer o check-in, passar não sei quantas vezes pela segurança, mostrar sucessivamente o cartão de embarque e passaporte até que finalmente nos sentamos a bordo do avião, fazendo votos que corra tudo bem, para logo em seguida seguirmos para a recolha de bagagens (e rezar para que não se tenham perdido) para uma vez mais repetir todo cerimonial e voltar a embarcar.

Isto porque para quem está em Varanasi e quer chegar a Kahtmandu tem de fazer um primeiro voo de cerca de hora e meia até Nova Dehli, na companhia aérea Jet Airways e, em seguida, fazer pouco mais de uma hora de vôo até ao destino final, desta feita na Nepal Airlines.

Tudo tranquilo e sem sobressaltos como se quer nestas ocasiões.

E porque um dia assim passado tem a particularidade de pouco ou nada ter para se dizer sobre ele, pelo que farei uso de uma "arma" de muitos poetas e escritores e dedicar-me-ei à divagação.

Não se pense, contudo, que uma tal opção implicará igualmente o recurso a uma qualquer forma de abstração.

Não será o caso e pegando precisamente naquela que será a marca fundamental de Varanasi - a sua profunda espiritualidade - talvez faça sentido voltar aos assuntos do corpo e, por isso mesmo, voltarei agora ao tema da alimentação, depois de num primeiro momento a ela me ter referido numa lógica de cuidados a ter, para agora me debruçar sobre o tipo de alimentação.

Esqueçam, conforme referi anteriormente, a carne de vaca de de porco. Embora existam aos milhares e por toda a parte não estão disponíveis para fazer parte de um qualquer menu, a primeira porque é sagrada o segundo porque apenas os pobres o comem.

Por isso a alimentação faz-se numa base dupla: vegetariana e não vegetariana.

Desde que chegamos somos aconselhados a não optar por restaurantes de rua ou não seleccionados  pelo guia ou condutor. "It's not good for your stomach", dizem eles. À falta de capacidade de contraditório opta-se pela via mais simples e pelos vistos menos arriscada, e assume-se como boa a escolha que nos é proposta (sem nunca impor, diga-se).

Esses restaurantes são quase sempre identificamos como sendo "multicuisine", isto é, será possível encontrar na respectiva ementa algo mais do que comida indiana, quase sempre chinesa e alguma coisa de italiano.

Como estas oportunidades - que, afinal de contas, são raras na nossa vida - entendo que a opção correcta é adaptar o ditado que nos diz que "em Roma sê romano" e, por isso mesmo, a minha atenção centra-se em exclusivo naquilo que a culinária indiana tem para nos oferecer. Ou seja, "na Índia, sê indiano".

Embora limitada, conforme referi, em termos daquilo que pode ser comido, acaba por ser relativamente ampla considerando as variações que existem nos pratos de carneiro (seekh), galinha (murgh), cabra (bhuna) ou camarão (jhinga), quase sempre acompanhado com arroz (excelente, diga-se) e pão (nan).

O custo médio de uma refeição destas fica por cerca de 7€, bebidas incluídas. Bastante em conta, portanto.

Os pratos vegetarianos são, como não podia deixar de ser à base de vegetais, ovo, queijo.

A questão principal prende-se, contudo, com o nível de "spicy" que se pretende condimentar o prato e, nesse aspecto, uma coisa deve ficar clara: são sempre picantes. Podem ser mais ou menos picantes, mas tudo tem sempre aquele toque que não deixa língua alguma indiferente.

As sobremesas não são nem muitas nem variadas, mas a fruta é genericamente boa, não fosse este um clima tropical.

Cessando por agora as divagações que, ainda assim, admito possam ser úteis a quem pretenda aventurar-se pela Índia - algo que, já se terá percebido, recomendo vivamente - e que, nessa medida, entendo a elas dedicar algum tempo, importa "regressar" à terra, mais concretamente a Kathmandu.

Não que haja muito para dizer, apenas que a primeira impressão (que não tem de ser necessariamente a que fica) é que nada tem a ver com as feéricas ruas das cidades indianas, não se vislumbrando engarrafamentos (e as correspondentes buzinadelas), lixo na rua ou animais à solta (tirando cães). Segundo nos informam durante 5 dias decorre um festival sagrado em honra aos deuses hindus.

Neste último aspecto, portanto, nada de novo.

Amanhã rumamos ao sopé dos himalaias.






domingo, 9 de outubro de 2016

Índia - Dia 8 (Varanasi)

A cidade de Varanasi, com os seus quase 5 milhões de habitantes, situada entre os rios Varanu e Asi (ambos afluentes do rio Ganges) e com uma história de de quase 3000 anos, está para os hindus como Meca está para os muçulmanos ou Jerusalém para os Judeus.

Isto é, trata-se de uma cidade sagrada para onde rumam anualmente milhões de peregrinos.

Simplesmente o politeísmo hindu torna esta cidade, banhada pelo rio Ganges (também ele sagrado), em algo único de se vivenciar, por ser indissociável da forma como o povo hindu vive a religião.

Mas não só.

Varanasi é também o local onde teve início o budismo enquanto religião, após o primeiro sermão de Buda aos seus cinco discípulos debaixo de uma árvore, o qual ocorreu precisamente nesta cidade,  sendo possível visitar esse mesmo local.

Por isso mesmo, embora os budistas sejam uma minoria em toda a Índia, esta religião ocupa um espaço bastante considerável nesta cidade, pelos motivos atrás referidos, ainda que também neste caso as invasões mongóis tenham "ajudado" a destruir boa parte dos vestígios que actualmente correspondem ao sítio arqueológico de Sarnath onde se ergue a imponente Stupa de Dhamekh do século V d.c.

Difícil mesmo é transpor, como aliás se tem percebido dos escritos anteriores, para um registo escrito as múltiplas representações e a adoração prestada pelos hindus (70% da população) aos seus milhares de deuses.

Mais difícil será ainda descrever essa mesma devoção na cidade de Varanasi.

A casa esquina a a cada rua existe um ponto de adoração a um dos deuses. Todas as pessoas parecem viver muito mais preocupadas (note-se "preocupação" em sentido totalmente figurado) com o cumprimento das suas orações diárias na certeza que a presença na Terra é apenas uma passagem (aqui sim literal) para um estado necessariamente melhor, através da reencarnação.

E, de facto, assim se perceberá melhor que não obstante a mais do que evidente pobreza de grande parte da população tal não pareça constituir qualquer motivo para um questionar da fé, como tantas vezes sucede.

Pelo contrário, genericamente as pessoas parecem viver em comunhão entre o (pouco) que têm e a sua genuína devoção a deuses com forma humana, animais e representações simbólicas, entre as quais uma reconhecível "swastika", embora com as extremidades direccionadas em sentido contrário às da infame cruz gamada nazi.

O folclore que rodeia alguns dos santuários é surreal: pequenos espaços com diversas estátuas representativas de deuses ao som de música ensurdecedora saída de várias colunas, em nada coincidente com a imagem idílica do som das citaras ou das flautas tradicionais da Índia. 

O centro nevrálgico de peregrinação em Varanasi são as margens do rio Ganges, com as suas famosas escadarias (gaht) que "desaguam" no rio e o que se segue é ainda mais difícil de transmitir por escrito.

Não posso, contudo, reduzir-me ao conforto de não procurar expressar a imagem que nos invade a cada momento, quando observamos às margens do rio seja num pequeno barco de madeira a partir do qual tivemos o privilégio de presenciar os banhos purificantes no rio, o depósito de velas e, claro está, as incríveis cerimónias de cremação, seja percorrendo a pé as ruelas apertadas onde surgem a todo o momento figuras que raramente se deixam fotografar, as mesmas que nos habituámos a ver em postais ilustrados.

Antes de abordar a parte da cremação importa deixar cair um preconceito que atravessa quase todas as pessoas quando se referem ao rio Ganges, incluindo eu próprio.

Não, o rio Ganges não cheira mal. Não, o rio Ganges não está cheio de corpos a flutuar. Não, o rio Ganges não está cheio de mosquitos.

Não pretendo, com isto, afirmar - nem faria sentido algum que o fizesse - que se trata de um rio limpo.

Não, o rio Ganges não é um rio limpo. Nele são descarregadas as cinzas e os restos mortais dos cadáveres incinerados e afundados (literalmente) os corpos de todos aqueles que não podem passar pelo ritual da cremação: crianças, mulheres grávidas, leprosos e pessoas que tenham sido mordidas por cobras (e morrido em consequência disso).

Simplesmente nada disso é perceptível à vista ou ao nariz.

Aliás, apesar da profusão de animais pelas ruas e, naturalmente, os respectivos dejectos abundarem um pouco por todo o lado e as muitas viaturas que circulam nas ruas, raras vez o cheio nas ruas é desagradável. Pelo contrário, quase sempre se notam traços de cheio a incenso, ou das muitas bancadas de comida, ou ainda das lojas de óleos.

Há, reconheço, uma incoerência em tudo isto, mas a realidade é esta é não aquela que preenche demasiadas vezes o nosso imaginário sobre a Índia.

Voltando à cremação trata-se, obviamente, de um momento que para um ocidental se torna potencialmente chocante, não porque se trate de um espectáculo macabro, mas porque tudo se passa em frente aos nossos olhos, desde a chegada do corpo, embrulhado num pano ou num saree (se for uma mulher), que poderá ficar a "aguardar vez" nas escadarias (por dia são celebrados entre 100 a 200 cerimónias de cremação que duram várias horas).

O resto é o frenesim das madeiras, das cinzas, tudo com uma normalidade inquietante para quem associa o luto a um processo doloroso e sobretudo privado.

O melhor estava reservado para o final do dia com a possibilidade de presenciar o lindíssimo festival de Ganga (religioso, claro está) nas margens da principal escadaria do Rio Ganges, no qual 7 sacerdotes ensaiam um conjunto de rituais de purificação e devoção ao rio sagrado que têm em fronte de si.

O regresso ao hotel (tal como a ida para o festival) fez-se num riquexó, puxado por uma bicicleta conduzida por uma rapaz que não teria mais de 20 anos e que a determinada altura nos confidencia ser muçulmano. "Sou muçulmano. Os hindus têm demasiados deuses. Eu só adoro um Deus.".

É tudo uma questão numérica, portanto.

O dia de amanhã levar-nos-à a um outro território: o Nepal.