domingo, 9 de outubro de 2016

Índia - Dia 8 (Varanasi)

A cidade de Varanasi, com os seus quase 5 milhões de habitantes, situada entre os rios Varanu e Asi (ambos afluentes do rio Ganges) e com uma história de de quase 3000 anos, está para os hindus como Meca está para os muçulmanos ou Jerusalém para os Judeus.

Isto é, trata-se de uma cidade sagrada para onde rumam anualmente milhões de peregrinos.

Simplesmente o politeísmo hindu torna esta cidade, banhada pelo rio Ganges (também ele sagrado), em algo único de se vivenciar, por ser indissociável da forma como o povo hindu vive a religião.

Mas não só.

Varanasi é também o local onde teve início o budismo enquanto religião, após o primeiro sermão de Buda aos seus cinco discípulos debaixo de uma árvore, o qual ocorreu precisamente nesta cidade,  sendo possível visitar esse mesmo local.

Por isso mesmo, embora os budistas sejam uma minoria em toda a Índia, esta religião ocupa um espaço bastante considerável nesta cidade, pelos motivos atrás referidos, ainda que também neste caso as invasões mongóis tenham "ajudado" a destruir boa parte dos vestígios que actualmente correspondem ao sítio arqueológico de Sarnath onde se ergue a imponente Stupa de Dhamekh do século V d.c.

Difícil mesmo é transpor, como aliás se tem percebido dos escritos anteriores, para um registo escrito as múltiplas representações e a adoração prestada pelos hindus (70% da população) aos seus milhares de deuses.

Mais difícil será ainda descrever essa mesma devoção na cidade de Varanasi.

A casa esquina a a cada rua existe um ponto de adoração a um dos deuses. Todas as pessoas parecem viver muito mais preocupadas (note-se "preocupação" em sentido totalmente figurado) com o cumprimento das suas orações diárias na certeza que a presença na Terra é apenas uma passagem (aqui sim literal) para um estado necessariamente melhor, através da reencarnação.

E, de facto, assim se perceberá melhor que não obstante a mais do que evidente pobreza de grande parte da população tal não pareça constituir qualquer motivo para um questionar da fé, como tantas vezes sucede.

Pelo contrário, genericamente as pessoas parecem viver em comunhão entre o (pouco) que têm e a sua genuína devoção a deuses com forma humana, animais e representações simbólicas, entre as quais uma reconhecível "swastika", embora com as extremidades direccionadas em sentido contrário às da infame cruz gamada nazi.

O folclore que rodeia alguns dos santuários é surreal: pequenos espaços com diversas estátuas representativas de deuses ao som de música ensurdecedora saída de várias colunas, em nada coincidente com a imagem idílica do som das citaras ou das flautas tradicionais da Índia. 

O centro nevrálgico de peregrinação em Varanasi são as margens do rio Ganges, com as suas famosas escadarias (gaht) que "desaguam" no rio e o que se segue é ainda mais difícil de transmitir por escrito.

Não posso, contudo, reduzir-me ao conforto de não procurar expressar a imagem que nos invade a cada momento, quando observamos às margens do rio seja num pequeno barco de madeira a partir do qual tivemos o privilégio de presenciar os banhos purificantes no rio, o depósito de velas e, claro está, as incríveis cerimónias de cremação, seja percorrendo a pé as ruelas apertadas onde surgem a todo o momento figuras que raramente se deixam fotografar, as mesmas que nos habituámos a ver em postais ilustrados.

Antes de abordar a parte da cremação importa deixar cair um preconceito que atravessa quase todas as pessoas quando se referem ao rio Ganges, incluindo eu próprio.

Não, o rio Ganges não cheira mal. Não, o rio Ganges não está cheio de corpos a flutuar. Não, o rio Ganges não está cheio de mosquitos.

Não pretendo, com isto, afirmar - nem faria sentido algum que o fizesse - que se trata de um rio limpo.

Não, o rio Ganges não é um rio limpo. Nele são descarregadas as cinzas e os restos mortais dos cadáveres incinerados e afundados (literalmente) os corpos de todos aqueles que não podem passar pelo ritual da cremação: crianças, mulheres grávidas, leprosos e pessoas que tenham sido mordidas por cobras (e morrido em consequência disso).

Simplesmente nada disso é perceptível à vista ou ao nariz.

Aliás, apesar da profusão de animais pelas ruas e, naturalmente, os respectivos dejectos abundarem um pouco por todo o lado e as muitas viaturas que circulam nas ruas, raras vez o cheio nas ruas é desagradável. Pelo contrário, quase sempre se notam traços de cheio a incenso, ou das muitas bancadas de comida, ou ainda das lojas de óleos.

Há, reconheço, uma incoerência em tudo isto, mas a realidade é esta é não aquela que preenche demasiadas vezes o nosso imaginário sobre a Índia.

Voltando à cremação trata-se, obviamente, de um momento que para um ocidental se torna potencialmente chocante, não porque se trate de um espectáculo macabro, mas porque tudo se passa em frente aos nossos olhos, desde a chegada do corpo, embrulhado num pano ou num saree (se for uma mulher), que poderá ficar a "aguardar vez" nas escadarias (por dia são celebrados entre 100 a 200 cerimónias de cremação que duram várias horas).

O resto é o frenesim das madeiras, das cinzas, tudo com uma normalidade inquietante para quem associa o luto a um processo doloroso e sobretudo privado.

O melhor estava reservado para o final do dia com a possibilidade de presenciar o lindíssimo festival de Ganga (religioso, claro está) nas margens da principal escadaria do Rio Ganges, no qual 7 sacerdotes ensaiam um conjunto de rituais de purificação e devoção ao rio sagrado que têm em fronte de si.

O regresso ao hotel (tal como a ida para o festival) fez-se num riquexó, puxado por uma bicicleta conduzida por uma rapaz que não teria mais de 20 anos e que a determinada altura nos confidencia ser muçulmano. "Sou muçulmano. Os hindus têm demasiados deuses. Eu só adoro um Deus.".

É tudo uma questão numérica, portanto.

O dia de amanhã levar-nos-à a um outro território: o Nepal. 








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