O roteiro de hoje levar-nos-á a uma das mais tradicionais zonas de Lisboa
onde é possível "desenhar" um percurso que em si mesmo justificaria a
vinda a este local sem necessidade sequer de referir pontos culturalmente
relevantes, sendo bastante para o efeito passear pelas pitorescas e ruas cheias
de vida do bairro de Alfama.
Mas como o objetivo destes roteiros é, antes de mais, proporcionar sugestões
culturais e, já se percebeu, gastronómicas, a quem simultaneamente dedique um
pouco do seu tempo à leitura dos mesmos e, mais ainda, tenha gosto por
conhecê-los, então não há como fugir ao assunto e, sem demoras, passar ao que
verdadeiramente importa.
O interessante deste museu é que reúne um riquíssimo acervo pertencente à coleção
Ricardo Espírito Santo Silva mas igualmente o facto de que esse mesmo acervo é
o resultado do trabalho de recuperação e restauro levado a cabo pela escola com
o nome do seu fundador e que tem deixado a sua marca de qualidade em muitos
outros locais pela cidade.
Há, contudo, sinais de preocupação com este espaço e esta coleção em virtude
dos problemas financeiros, cuja natureza não cabem nestes roteiros, que
envolvem o Grupo BES/Novo Banco, havendo o risco de, num futuro próximo, a
riqueza que agora é pública se tornar objecto de usufruto privado em virtude da
alienação da colecção para saldar outras dívidas.
Um pouco mais "abaixo" junto à estação de Santa Apolónia
encontramos o Museu do Exército, um local relativamente datado, entenda-se no
qual se percebe não são feitos investimentos de modernização há bastante tempo,
mas que acaba por ter nesse aspecto talvez o seu maior charme.
Se o roteiro começou em Alfama então em Alfama há-de acabar.
E por isso mesmo o local ideal para que isso aconteça é no
restaurante "A Baiuca".
Nota prévia, convém marcar lugar.
E porquê? Haverá então que ler o que se seguirá.
Este típico restaurante de fados em Alfama terá cerca de 5 ou 6 mesas, que não levam mais do que 8 pessoas e é aqui que começa a diversão.
Normalmente é um pressuposto em qualquer restaurante que não tenhamos de partilhar essa mesa com alguém que nem remotamente conhecemos. Aqui não, chegamos e sentamo-nos onde houver lugar. O resto é o que as pessoas (quase todos estrangeiros) à mesa quiserem que seja, isto é, quase sempre acabam a noite a falar uns com os outros como se fossem amigos de longa data.
Mas o próprio conceito de "acabar a noite" não tem o mesmo significado que terá noutros contextos.
Dificilmente será possível encontrar outro local onde seja possível estar sentado à mesa a partir das 20h e só sair quando se quiser, porque ninguém nos dirá em algum momento que o nosso tempo acabou e há mais pessoas à espera.
Não. Os donos fazem questão de não "despachar" ninguém, porque toda a refeição acaba por se prolongar por várias horas.
Repete-se então a pergunta. E porquê?
Porque, diz a tradição, que enquanto se canta o fado se faça silêncio.
Ora como quase toda a noite o restaurante é visitado por diferentes fadistas que, num tom verdadeiramente popular, entoam versos com mais ou menos desafinação acompanhados à guitarra num dos cantos deste pequeno espaço, difícil mesmo é estar simultaneamente a servir refeições e a ouvir fado ao mesmo tempo.
Em boa verdade é até necessário esperar algum tempo pela primeira pausa - que não se sabe ao certo quando virá - para que comecem a circular os pratos pedidos à chegada.
De resto não há ninguém que não cante, entre convidados, o dono (que abre as "hostilidades"), a esposa, a cozinheira, algumas figuras tão patuscas que entre "atuações" esperam novamente a sua vez à porta com um cigarro numa mão e um copo de vinho na outra.
No final a conta não é pequena nem excessivamente grande, mas como nos dizia a dona/fadista, ao despedir-se de nós com direito a dois beijinhos, "eu não digo a ninguém para sair, por isso tenho os mesmos Clientes toda a noite". Nem mais.
Quando ouvirem dizer "Alfama é tudo isto". Acreditem que é verdade.
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