domingo, 28 de agosto de 2011

O caldeirão

No filme “Strange Days” da realizadora Kathryn Bigelow a cidade de Los Angeles surge como uma cidade sitiada em que deixou de haver autoridade, lei e ordem.

O leitmotiv é o final do milénio e o presuntivo final do Mundo tal como o conhecemos.

Quem tenha assistido ao terrível espectáculo vivido em terras de Sua Majestade, a que se convencionou apelidar de “Motins de Londres”, certamente poderá encontrar algum paralelismo entre a cena descrita no inicio desta dissertação e o que se passou um pouco por toda a Inglaterra.

Tendo por rastilho uma mal explicada morte de um cidadão os ingleses assistiram à queda da tradicional fleuma britânica rapidamente substituída pela anarquia, ou seja, como se não houvesse o “dia seguinte”.

Quem conhecer minimamente a cidade de Londres certamente reconhecerá tratar-se de uma cidade que no que toca ao cosmopolitismo apenas terá paralelo na cidade de Nova York e pouco mais.

Em tempos idos durante o “reinado” da Dama de Ferro os ingleses tinham basicamente duas classes: os muitos ricos e os muito pobres, tal era a clivagem social que se verificava e que foi bastante bem caracterizada por alguns realizadores de cinema realistas que souberam filmar com mestria esses tempos.

Já nessa ocasião os sintomas de tensão social eram latentes e prontos a explodir com mais ou menos intensidade.

Os anos seguintes permitiram uma diminuição destas clivagens e, como grande potência económica que é, os ingleses conseguiram diminuir significativamente aquele que é, a meu ver, o grande problema das sociedades modernas, isto é, o desemprego.

Qualquer sociedade que possa orgulhar-se de ter um modelo de pleno emprego poderá certamente contar com uma menor conflitualidade social e tudo aquilo que lhe está inerente.

Quanto mais não seja tal decorre do facto das pessoas estarem ocupadas nos seus locais de trabalho ao invés de vaguearem sem destino pelas ruas normalmente sem objectivos de vida.

É certo e sabido que os últimos anos levaram ao crescimento acentuado do número de desempregados um pouco por toda a parte, situação à qual os ingleses não puderem escapar.

O problema é que qualquer situação emergente de desemprego afecta em primeiro lugar aqueles que mais dele dependem, por mais pequeno que seja o salário, na medida em que constitui literalmente a sua forma de subsistência.

Em Inglaterra como em qualquer outro lugar os principais afectados são os jovens, as classes mais desfavorecidas e os emigrantes, precisamente tudo aquilo que não falta nas ilhas britânicas, nomeadamente em Londres.

Ou seja, o “argumento” do filme que se passou a seguir à primeira morte era conhecido e, provavelmente expectável tal como em anos não muito distantes havia sucedido nos arredores de Paris precisamente tendo por base o mesmo factor gerador dos distúrbios.

O que ninguém – nem as próprias autoridades policiais - certamente poderia prever foi o aproveitamento por parte de um conjunto significativo de pessoas das circunstâncias, para instalar o terror e anarquia, nem tão pouco que muitos dos seus intérpretes fossem menores de idade.

É aqui que reside a meu ver o grande drama de toda esta questão.

O motivo que está por detrás dos comportamentos destes jovens não pode ser explicado pelos mesmos argumentos que poderiam explicar uma situação extrema de conflitualidade social associada, por exemplo, ao desemprego.

Por detrás destes comportamentos está toda uma Sociedade que perdeu há muito os seus principais valores e que é hoje incapaz de os transmitir às novas gerações e tal foi bem perceptível quando se ouviam algumas pessoas a clamar pela responsabilidade dos pais em chamar os seus filhos à razão ou obriga-los a ficar em casa.

É fácil verificar pelo que se constatou que tais exigências já não são possíveis em sociedades como a inglesa e, desconfio bem, em diversas outras.

Os “Motins de Londres” poderão ter sido um vislumbre daquilo que estará para vir e se assim for então será mesmo melhor que o Mundo acabe de facto no dia seguinte. Assim vão as cousas.

domingo, 21 de agosto de 2011

Contra-corrente

Certamente terá passado despercebido da atenção da generalidade da opinião pública o facto de uma agência de notação financeira – essas mesmas que andam tristemente nas “bocas do mundo” – ter aumentado o rating da Estónia.

A avaliar para tendência exacerbada do sentido descendente das principais agências não deixa de ser curioso tentar perceber o motivo pelo qual um quase incógnito pequeno estado do báltico anda em sentido contrário às principais economias mundiais.

Tal facto é ainda mais surpreendente porque, como é sabido, a Estónia é membro de pleno direito da UE, não parecendo portanto nada afectada com os acentuados sintomas de fragmentação que esta começa a exibir.

Este país, cuja independência é extremamente recente, é para mim próprio um mistério, e por isso mesmo permito-me analisar o contexto deste estado em particular no conjunto dos países da Europa de Leste que, em tempos não muito distantes, pertenciam à denominada “Cortina de Ferro” e faziam parte do Pacto de Varsóvia.

A realidade é que parece haver dois tipos de repercussões da actual crise nos países integrantes da UE.

Por um lado temos as “grandes potências” que parecem começar a perceber que não são imunes aos problemas dos denominados países periféricos e que o efeito de contágio tantas vezes relativizado é afinal mesmo para levar a sério.

Por outro lado temos os países que aderiram em último lugar à UE e, coincidência ou não, são quase todos eles o resultado de fragmentação das nações das quais emergiram (Jugoslávia e URSS) ou estiveram na penumbra de um estado totalitário subjugados por ditaduras durante décadas.

Verifica-se, estranhamento ou não, que são precisamente estes últimos que parecem imunizar-se contra os efeitos da crise ou, como no caso da Estónia, andam em contra-ciclo com a mesma.

As razões para tão surpreendente facto não são certamente fáceis de explicar nem resumiveis em tão breves linhas mas, no essencial, é minha convicção que o “segredo” estará sobretudo na sua capacidade de produzirem a sua própria riqueza, vulgo competitividade.

É certo que nos anos seguintes à queda do muro de Berlim verificou-se uma “fuga” em massa de muita actividade industrial para Leste à custa de uma mão-de-obra barata, certamente tão atractiva que permitia mesmo contemporizar com elevados níveis de corrupção e baixos níveis de qualificações em determinadas actividades.

A verdade é que rapidamente mesmos esses “pormenores” começaram a dissipar-se, observando-se uma crescente capacidade de resposta às grandes empresas que aí se começaram a instalar.

Não é menos verdade que reconhecidamente os sistemas de ensino na generalidade destes países era dos mais exigentes do mundo, facto do qual as suas populações sempre souberam tirar proveito quer internamente quer quando tiveram necessidade de emigrar em massa para o Ocidente.

Mesmo nessa ocasião é legitimo pensar que poucas pessoas no mundo inteiro teriam a capacidade de adaptação revelada por pessoas – muitas delas dotadas de cursos superiores – quando tiveram de optar por profissões que se colocam nos antípodas daquelas que estavam habituadas nos seus países de origem.

O mercado de leste é hoje um pólo atractivo de crescimento para muitas empresas e começa mesmo a verificar-se um movimento de emigração de Ocidente para Leste em busca de melhores oportunidades de trabalho.

Enquanto tal acontece o “coração” da Europa entrega-se à auto-flagelação ao sabor dos humores dos seus principais líderes, manifestamente incapazes de pensar na Europa como um todo mas apenas na gestão das suas próprias expectativas de reeleição.

O “sonho” de uma verdadeira União Económica e Monetária mas também Política e Social foge “entre os dedos” dos Europeus que começam a suspirar pelo regresso a um passado não muito distante em que cada país geria a sua “casa” e a sua moeda conforme bem lhe entendia.

A Europa começou a “federalizar-se” sem que todos os seus membros estejam inequivocamente alinhados com tal conceito e em que os principais Estados foram criando para eles próprios regimes de excepção às regras supostamente comuns.

A passividade com que tais compromissos foram sendo aceites só tem paralelo na incapacidade de perceber que a Europa não “joga” com as mesmas regras dos seus principais mercados concorrentes.

Enquanto a Europa luta por um controlo espartano das suas contas públicas os EUA alteram da forma que entendem a sua própria capacidade de endividamento, como que dizendo “se o problema é falta de dinheiro manda-se fazer mais”.

Aparentemente à margem de tudo isto países como a Estónia vão fazendo o seu percurso e por isso não será de estranhar que aqueles que aderiram em último lugar à UE venham a ser no futuro os primeiros a querer sair dela. Assim vão as cousas.

domingo, 14 de agosto de 2011

Notícias do Mundo

O escândalo das escutas das caixas de correio levadas a cabo pelo jornal inglês “News of the World” apenas poderá ter causado alguma surpresa por um simples motivo.

Esse motivo é o do próprio jornal em causa se o próprio alvo da notícia.

De resto julgo que só por mera distracção tudo o resto poderá constituir uma verdadeira surpresa.

A verdade por detrás de todo este “esquema” montado pelo jornal é que neste caso se levou ao extremo a questão da fronteira entre a liberdade de imprensa e os direitos individuais dos cidadãos.

Esta fronteira que existe e existirá sempre em qualquer regime que se preze de salvaguardar os princípios básicos da liberdade de informação tem sido sucessivamente ultrapassada precisamente por aqueles que têm os meios para o fazer.

E esses são os órgãos de comunicação social.

Os sinais já eram demasiado evidentes e resultam fundamentalmente da extrema competitividade entre os diferentes operadores e demanda pelos respectivos “shares” de audiência ou de leitores, consoante os casos.

Por detrás desses “shares” estão os lucros das empresas, seja pela compra do jornal ou pela aquisição do serviço, seja naturalmente pelo crescimento da publicidade paga.

A lógica que preside a esta “guerra” é a aquela de quem “chega” primeiro à notícia e quem primeiro a divulga.

Mas não só. Passou também a ser determinante a forma como se obtém e como se divulga a notícia.

E é por aqui que o problema principal passou a residir.

Na ânsia de dominar a informação há talvez hoje mais do que nunca a consciência de que passou a valer tudo para se obter essa mesma informação.

Normalmente a obtenção da informação passava pelas “famosas” fontes próximas do processo mas não identificadas precisamente tendo por base um presuntivo direito à protecção das fontes.

Neste “caldeirão” das fontes de informação todos cabem: a vítima, o ladrão, o corrupto, o traficante, o violador, o assassino, etc., ignorando o facto que o referido direito que estas mesmas pessoas terão em não verem reveladas as suas identidades colide na maior parte das vezes com outros direitos, esses sim de natureza inalienável.

Obtida a notícia, importa divulga-la adequadamente.

Também nesta fase a noção de divulgação adequada perdeu parte do seu significado prático ao longo dos tempos.

Por isso mesmo passou a ser mais relevante o impacto imediato que a notícia possa causar no potencial leitor ou espectador do que o conteúdo da mesma, e para isso nada melhor do que uma parangona jornalística de capa inteira.

A consciência do impacto que uma determinada notícia terá se transmitida de uma forma que cause impacto imediato é uma “ferramenta” muito utilizada pela generalidade dos órgãos de comunicação social mas que já é muito familiar aos denominados jornais sensacionalistas.

O “News of the World” limitou-se, por assim dizer, a ir ainda um pouco mais longe na forma como obtinha as suas informações e montou um esquema de corrupção e espionagem de que agora se conhecem – julgo eu – apenas alguns dos seus contornos.

O jornalismo livre e independente é uma das mais evidentes formas de expressão de qualquer sociedade democrática.

A relevância desta presunção deve-se ao precisamente ao facto de que quanto mais livre e independente a informação mais livre e igualmente independente será a Sociedade cada vez mais ávida dessa mesma informação.

Justamente pelo contrário a subversão deste pressuposto, tal como actualmente acontece, condiciona e limita as pessoas e a percepção que elas têm sobre o mundo que as rodeia e, como consequência incontornável, a sua capacidade de julgamento.

O paradigma que daqui resulta é que uma liberdade de impressa sem regras tem como resultado uma Sociedade menos livre.

Desconheço e permito-me mesmo presumir que este ciclo não possa ser invertido independentemente de casos como o “News of the World”.

Se tal puder de facto acontecer só poderá ser devido ao aumento das regras de supervisão por parte das entidades que têm a seu cargo essa função mas sobretudo pela via da exigência de isenção e respeito pela legalidade por parte do próprio receptor da notícia e que, no fundo, somos todos nós. Assim vão as cousas.

domingo, 7 de agosto de 2011

Os néscios da História

O recente atentado terrorista na Noruega colocou na ordem do dia a capacidade de (aparentemente) um só indivíduo colocar em causa num mesmo acto toda a estrutura de um Estado que era – e deverá continuar a ser – um exemplo de tolerância.

Sobre as consequências deste acto bárbaro já muito se disse e se escreveu mas, creio, não houve lugar a uma reflexão sobre a natureza na “filosofia” sobre a qual assenta o carácter do sujeito – ou muito provavelmente dos sujeitos – que estão por detrás do referido acto.

Foi referido, porventura de uma forma demasiado leve, as ligações do autor dos atentados a movimentos de extrema-direita e a círculos de fanatismo anti-islâmico e anti-emigração.

Ora, precisamente esta questão deve ser levada muito a sério e devidamente analisada no contexto da Europa comunitária.

Os períodos de crise como os que vivemos actualmente são o terreno fértil para o surgimento e o crescimento de tendências de carácter radical que procuram explicar a todos aqueles que precisamente se encontram mais expostos a essa crise que o problema da mesma reside no centro do sistema.

Contudo, se os partidários da extrema-esquerda “explicam” os fundamentos da crise com a natureza ideológica do sistema, isto é, da sobreposição do Capital sobre o Estado Social, os seguidores dos movimentos de extrema-direita tendem a canalizar as suas atenções para o islamismo e para os fluxos de emigração que de uma forma geral são transversais a toda a Europa.

Ou seja, por um lado temos o radicalismo ideológico e por outro a radicalismo sociológico.

A grande diferença decorre – pelo menos nos dias de hoje – na forma como cada um dessas formas de radicalismo coloca em prática as respectivas “políticas”.

Se por um a extrema-esquerda europeia participa de uma forma mais ou menos geral no jogo político das sociedades democráticas através do combate ideológico a verdade é que a sua antítese “alinhando” nesse mesmo jogo socorre-se de uma lógica bem mais perigosa.

Essa lógica é a lógica do medo.

É a lógica de quem pretende explicar aos outros que aquilo de mal lhes sucede tem uma religião e tem uma nacionalidade diferente da sua.

A grande verdade é que tem sido verificável que esta mensagem parece passar com relativa facilidade em momentos de crise, e a actualidade está ai para o demonstrar uma vez mais.

No entanto, o problema maior reside na forma como cada um se propõe resolver um problema aparentemente comum mas com uma natureza totalmente oposta.
A História demonstrou sempre ao longo dos séculos que não é possível afastar aqueles que são considerados indesejáveis sem o recurso à força, isto é, pela via da supremacia militar.

E é precisamente por este facto que alguns dos movimentos de extrema-direita que começam a ganhar um espaço cada vais mais amplo nas principais democracias ocidentais pode e deve ser motivo de preocupação para todos aqueles que se consideram apoiantes da liberdade e do regime democrático.

Não tenhamos ilusões, essa liberdade e democracia estão ameaçados e se duvidas houver existirá sempre um Anders Breivik para nos demonstrar que esta é uma realidade infelizmente premente.

Alguns ordenamentos jurídicos (como por exemplo o português) têm – e a meu ver bem – disposições constitucionais que expressamente inibem a constituição de partidos de natureza militar, militarizadas ou paramilitares ou mesmo organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.

Fazem-no por uma razão muito simples e que reside no facto de tais movimentos colidirem com os principais fundamentos da Constituição que são precisamente o de garantir direitos fundamentais.

Certamente que nem todos os Estados têm mecanismos equivalentes de natureza constitucional que os proteja deste tipo de ameaças e por isso mesmo alguns partidos de extrema-direita têm vindo a ganhar um crescente protagonismo, nomeadamente nos denominados “países mais ricos” da Europa.

A principal subversão de qualquer sistema democrático reside precisamente na possibilidade de alguém que despreza o Estado democrático poder ascender ao poder exactamente pela (irónica) via da democracia com o objectivo último de a suspender, substituindo-a por um regime autocrático e ditatorial.

Não tenho a certeza que os líderes europeus estejam devidamente atentos para este problema e, atrevo-me mesmo a dizer, que não fará parte das suas preocupações imediatas por colidir com questões de soberania individual dos Estados-membros.

Nada mais errado porque tudo se reconduz a um problema de memória colectiva de toda a Europa.

A verdade é só uma, na última vez que a Europa esteve “desatenta” relativamente a este fenómeno deu por si quase totalmente ocupada por um regime de natureza fascista que pugnava precisamente pelos mesmos ideais do terrorista de Oslo, com as consequências que se conhecem.

Esperemos que esta última página de radicalismo possa criar nas mentes das pessoas um efeito contrário ao que lhe está subjacente e que pelo menos nesse aspecto, por uma vez que seja, o sofrimento de tantos inocentes não tenha sido totalmente em vão. Assim vão as cousas.