domingo, 27 de novembro de 2011

Números oficiais

Em dia de qualquer greve surge sempre aos olhos dos portugueses uma perspectiva dupla do alcance e resultados da referida greve.

De um modo geral - para não dizer sempre - as análises variam entre a muito fraca adesão na perspectiva do Governo e numa elevada taxa de adesão de acordo com a percepção dos partidos da oposição e muito particularmente dos sindicados que promovem a referida greve.

No caso de uma greve geral este acentuar da divergência interpretativa dos índices de adesão são ainda mais notórios, pelo que não terá sido de estranhar que a síntese da terceira greve geral ocorrida em Portugal após o 25 de Abril tenha oscilado entre os poucos mais de 3% de acordo com os dados do Governo e a convicção de se ter tratado da maior participação de sempre numa greve geral na perspectiva dos sindicatos.

No entanto, a leitura que julgo continua e, creio bem , continuará por fazer é analisar até que ponto continuará a fazer sentido falar em geral geral e quais são efectivamente as consequências reais do "day-after" de qualquer greve, mas em particular de uma greve geral.

A expressão "Greve Geral" surge num contexto em que a generalidade do aparelho produtivo era essencialmente público e no qual grande parte das pessoas vivia ainda embutido de um espírito pós-revolucionário em que havia a clara convicção que a força individual resultava da união colectiva.

Na prática qualquer greve - geral ou sectorial - tinha de facto não apenas um efeito aglutinador de uma determinada classe mas uma consequência de natureza prática, isto é, contribuía decisivamente para a concretização de um objectivo concreto, precisamente aquele que havia motivado a convocação da da greve.

Após a entrada na UE e a progressiva alteração do modelo organizacional do Estado, o sector público foi sendo significativamente reduzido a participações minoritárias nas empresas anteriormente detidas pelo próprio Estado ou por e simplesmente este deixou de ter qualquer papel na organização das referidas empresas.

Assim sendo, a noção de Estado passou a reconduzir-se a uma estrutura - imensa, diga-se - de funcionários administrativos da Administração Central, Local e Regional e ao conjunto dos profissionais dos sectores públicos da educação, saúde e transportes.

Tudo o mais passou a reger-se essencialmente pelas regras próprias do mercado de trabalho, nomeadamente ao nível do modelo de contratação e regulação das condições de trabalho, sem prejuízo da submissão aos principais ditames da legislação laboral e da própria Constituição.

Contudo, esta alteração implicou uma alteração significativa na forma de adesão das pessoas aos movimentos grevistas ainda que, no essencial, continue a haver uma ampla concordância com as respectivas motivações.

No essencial, qualquer greve passou a ser vista como uma luta dos funcionários públicos contra a sua entidade patronal - o Estado - e, acima de tudo, como um verdadeiro transtorno às suas próprias vidas, por influir directamente com serviços de que as pessoas normalmente necessitam, seja na saúde, escolas ou transportes.

Assim sendo, não creio ser possível falar hoje em dia em verdadeiras greves "gerais", mas sim em greves quase exclusivamente do sector Estado.

Mas a mais importante análise a qualquer greve e aquele que nos remete para os efeitos práticos da mesma, ou seja, aquilo que é possível extrair hoje em dia de um evento do qual resultou no imediato a perda de remuneração de quem aderiu à greve (ou se viu impossibilitado de trabalhar por via da mesma) e as complicações para o dia-a-dia das pessoas que não querendo ou não podendo, não aderiram a essa mesma greve.

O meu entendimento é que o efeito prático é extremamente reduzido para não dizer nulo.

Por um lado é impossível desligar qualquer greve do movimento corporativo sindical que lhe está subjacente e que se encontra integralmente conectado com a oposição ao Governo e muito particularmente a um determinado sector da denominada extrema-esquerda.

Por outro é por demais evidente que a receptividade do próprio Estado em efectuar qualquer cedência à generalidade (ou totalidade) das reivindicações sindicais e dos trabalhadores que estes representam é manifestamente reduzida.

Se tal sensibilidade se verificava já de forma marcadamente acentuada ao longo da última década, a verdade é que o actual momento de crise e as medidas que (supostamente) são necessárias tomar para a ultrapassar não apenas tornam inviável a tentação de cedência eventualmente a troco de algumas simpatias, ou dizendo de outra forma, a troco de alguns votos, como parece ser cada vez mais claro que existe um largo espectro da nossa Sociedade que não vêm com "bons olhos" a perspectiva de acentuar ainda mais as dificuldades em virtude dos efeitos negativos de qualquer greve para a economia.

Esta realidade, que eu considero indesmentível, está muito para além da disputa entre os dados de maior ou menor adesão a qualquer greve.

Por isso mesmo, é cada vez mais forte a minha convicção que não podendo nem devendo questionar-se a legitimidade de alguém poder manifestar a sua discordância através do uso da prerrogativa constitucionalmente garantida de exercício do direito à greve, os movimentos sindicais teriam certamente muito mais a ganhar adoptando uma atitude firme e construtiva em sede de concertação social, sempre numa perspectiva que é melhor um mau acordo que acordo nenhum.

É que no primeiro dos casos sempre será possível obter algo de positivo para ambas as partes, nomeadamente para aquela que carece - pelo menos à partida - de menor força negocial, sendo que no segundo caso essa mesma parte ficará sempre, e provavelmente cada vez mais, à mercê daquelas que sejam as decisões futuras do Governo.

O problema é que para aí chegar é preciso que entre uns e os outros houvesse uma verdadeira vontade de alcançar um acordo, demonstrando capacidade de cedência no pior dos contextos, ficando no entanto a percepção que tal não acontece porque no essencial existe quase sempre as principais decisões já estão previamente tomadas, incluindo a decisão de fazer greve. Assim vão as cousas.

domingo, 20 de novembro de 2011

Posição oficial

Não sei se este é um daqueles momentos a que se convencionou chamar de “sinais dos tempos”, mas continua a ser difícil para mim entender o motivo pelo qual alguns órgãos de soberania e ou titulares de cargos públicos utilizam as vulgarmente denominadas redes sociais como autênticos órgãos oficiais de comunicação.

Poderia, como principio, admitir que tal se deve à convicção de, por essa via, se chegar a um razoável número de cidadãos.

No entanto, não creio que tal possa ser justificação bastante para tal.

As redes sociais são um local à escala mundial onde literalmente “tudo se passa”, desde aquilo que é relevante até à mais profunda banalidade.

Sendo, por isso mesmo, um espaço a que poderemos chamar de “democrático” não é, ainda assim, um espaço totalmente livre.

Tal resulta do facto de nem todos os destinatários dos comunicados mais ou menos oficiais estarem necessariamente “ligados” a qualquer destes novos espaços de interligação social, pelo que a repercussão pública de qualquer notícia apresenta desde logo a condicionante de apenas se destinar a que tenha aderido previamente aos referidos espaços.

Ainda assim e para quem conheça minimamente o funcionamento destas redes, não bastará estar “conectado” ou registado é também necessário que se tenha aderido à respectiva página através de uma opção que tem ela própria um carácter duvidoso, o “famoso” botão do “like”, ou em bom português, o botão do “gosto”.

Referi-me ao carácter duvidoso desta opção porque ela própria não admite o seu contrário, isto é, uma opção de “don’t like” ou “não gosto”, ou seja, ou se adere porque se gosta ou nada feito.

A “modernidade” que parece estar associada a esta nova forma de comunicação constitui, de acordo com o meu entendimento, uma desvalorização do carácter institucional que deve presidir à tomada pública de qualquer dirigente político e de sobremaneira quando esteja em causa um órgão de soberania.

Não está tanto em causa a eventual necessidade de redefinição das formas de “chegar” à população em geral, está em causa, isso sim, a dignidade formal que terá sempre de estar subjacente a essas formas e a garantia da universalidade das mesmas.

A não ser assim estaremos perante uma redução do próprio conceito de “democracia participativa” a que apenas poderá aceder quem disponha dos meios para tal, em prejuízo da necessária pluralidade.

A “qualidade” de qualquer democracia desenvolve-se para capacidade de criar condições para que todos nela participem sem restrições.

A “democracia das redes” é uma ilusão de democracia porque tem associada uma ilusão de pluralidade, em que a difusão das notícias surge de forma diferida através dos canais de notícias que tornam público aquilo que inicialmente foi dado a conhecer apenas a alguns, e quando tal acontece será necessariamente objecto de trabalho jornalístico com maior ou menor rigor.

Por outro lado tem-se verificado que o teor das comunicações efectuadas através das redes sociais confunde-se, não raras vezes, com uma forma indisfarçada de transmissão de mensagens mais facilmente assimiláveis com opiniões de natureza pessoal do que com o suposto carácter oficial das mesmas.

Esta conflitualidade explícita entre a esfera da opinião pessoal e a opinião oficial cria uma nebulosidade insanável relativamente ao formalismo que deve nortear o carácter oficial da informação que é transmitida pelos órgãos de soberania e dos detentores de cargos públicos.

O uso generalizado de uma linguagem do tipo “sms” ou “tweet” até poderá ter subjacente a facilidade da sua transmissão, mas em caso algum a sua real compreensão. Assim vão as cousas.

sábado, 19 de novembro de 2011

domingo, 13 de novembro de 2011

Seguro de vida

A discussão recente sobre a acumulação de pensões de políticos e ex-políticos bem como sobre a natureza de alguns dos respectivos benefícios complementares aos respectivos salários é, em si mesmo, ilustrativo desta espécie de “silly season” em que vivemos.

Desde logo porque esta temática está eivada de uma dose significativa de demagogia.

E porquê? Porque parecem fazer-nos crer que esta questão é um facto novo na nossa Sociedade e que ninguém teria aparentemente conhecimento da extensão da mesma.

Ora bem, a verdade é que este é um verdadeiro segredo de Pirro, na medida em que só aqueles que há muito colocaram de parte o interesse por estas e outras questões ou alguém fundamentalmente muito distraído poderia ignorar que o sistema político havia criado para si próprio mecanismos de “compensação” pela dedicação à causa pública que são no mínimo discutíveis e sobretudo altamente questionáveis em momentos de crise como os actuais (se é que é possível afirmar que em algum momento não estivemos em crise).

Ainda que admitindo que tal possa ter ocorrido teria sido precisamente nesse período, o tal das “vacas gordas”, em que poderia e deveria ser questionado um sistema que no essencial se beneficia a ele próprio.

A perversão desta temática é, no essencial, esta mesma, ou seja, a constatação que na base da construção de todo um sistema de pensões e de subsídios estão precisamente aqueles que poderiam e vieram a beneficiar das regras que os próprios criaram.

Uma espécie de julgadores em causa própria ou, adaptando esta imagem à realidade concreta foram legisladores em proveito próprio.

A segunda vertente perversa desta questão é a que nos remete para a noção de causa pública.

Em bom rigor o que se passa é precisamente o inverso do que seria expectável, ou seja, pela lógica dos princípios o trabalho a favor da referida causa pública, seja na qualidade de deputado, ministro, secretário de estado, etc., etc. – já para não falar dos mais altos cargos da nação - deveria ser considerado por quem desempenha tais cargos como um privilégio concedido a quem é empossado numa determinada função que se destina, na pureza dos princípios, a zelar pelo interesse público e bem-estar dos cidadãos.

Acontece que esta pureza nunca – ou com honrosas excepções – foi entendido como tal, mas sim como uma forma de auto-promoção ou como uma suspensão de uma qualquer outra actividade e que por isso mesmo deverá ser devidamente compensada.

Uma espécie de “fardo” que cada um terá de “carregar” durante a sua permanência num qualquer cargo público.

A verdade é que essa compensação efectivamente acaba por surgir seja na forma de subvenções vitalícias ou através de subsídios normalmente inexistentes em qualquer profissão.

O problema é que os portugueses parecem ter “acordado” para uma realidade que já existe desde 1974 do qual resulta que para se beneficiar de tal subvenção vitalícia não é necessário uma dedicação à causa pública durante toda uma carreira contributiva, mas apenas o exercício durante 8 anos – sucessivos ou intercalados – das funções de governante ou deputado e mesmo quem não reúna essas condições terá ainda assim o direito a um subsídio de reintegração, partindo de um pressuposto que quem ocupa algum desses cargos sairá desfavorecido para a sua restante vida profissional o que, convenhamos, não se afigura como provável.

Por outro lado, ao tal “despertar” para a realidade permitiu perceber que grande parte dos beneficiários da referida subvenção vitalícia continuou a exercer uma actividade profissional, normalmente bem remunerada, que acumula com os proveitos resultantes da respectiva condição de reformados precoces.

Igualmente digno de registo foi constatar a existência de outro tipo de benefícios, por exemplo o subsídio de alojamento, para cidadãos que sendo naturais de regiões de Portugal fora de Lisboa, tiveram de imigrar para a capital, ainda que em alguns casos tenham aí adquirido aquilo a que de forma bastante oportuna se convencionou chamar de “segundas residências”.

A reacção de alguns – muito pouco, diga-se – dos beneficiários deste modelo foi aquele que seria de esperar num contexto de profunda demagogia, abdicando publicamente – espera-se que o tenham feito na prática - de tais benefícios, não sem antes aludir ao facto de que estariam a abdicar de um direito adquirido.

Nada mais verdade. Contudo, quem tal afirma deveria ser consequente com essa convicção não abdicando de um proveito que lhe é conferido por via de lei.

Ora, precisamente em tempos como as actuais em que as pessoas são despojadas a um ritmo alucinante de boa parte de um conjunto dos tais direitos adquiridos que apenas lhes foi conferido com o advento da democracia, dificilmente se compreende o discurso sobre estes mesmos “direitos adquiridos” por parte de quem beneficia em concreto de um verdadeiro regime de excepção.

Estaremos, porventura, a olhar o problema por um ângulo que não será o mais correcto e que presumo que dificilmente alguém se atreverá a focalizar.

É que a questão dos benefícios atribuídos aos titulares dos cargos públicos não se deve colocar no plano dos direitos mas no plano da ética e se assim tivesse sempre sido não estaríamos hoje a “discutir” este assunto, simplesmente porque ele não existiria. Assim vão as cousas.

domingo, 6 de novembro de 2011

Da cultura

Numa entrevista recente a um canal de televisão António Lobo Antunes, porventura o maior escritor vivo português e certamente um dos maiores representantes da riquíssima história da literatura portuguesa, referiu a importância da cultura em qualquer sociedade.

Essa convicção corresponde, sem sombra de dúvida, a uma realidade histórica mas também a uma realidade actual de carácter indesmentível.

Não me parece, contudo, que a cultura de que António Lobo Antunes falava remeta necessariamente para uma noção de cultura normalmente associada a uma certa elite intelectual que frequenta os museus, as salas de concertos, etc.

Ainda que admitindo que também se poderia referir a esse "grupo" específico, creio que a cultura em causa é a cultura da informação, a cultura da capacidade de avaliar ou de efectuar juízos de valor, livres de constrangimentos ou de influências de terceiros.

A verdade histórica é que os poderes instituídos sempre lidaram mal com "esta" cultura.

Tal cultura é a de quem aprendeu a questionar e a questionar-se a si próprio e por arrastamento a questionar esses mesmos poderes.

No período da inquisição o conceito de herege incluía todos aqueles que se atreviam a expor as suas ideias em público, nomeadamente se essas ideias colidissem com a noção teológica dominante e essa perseguição atingia em particular os homens da ciência e da literatura, ou seja, aqueles poucos que conseguiam libertar da grilheta da ignorância geral, facilmente controlável pela lógica do medo.

Esta mesma perspectiva é igualmente a prática corrente em qualquer ditadura e tem normalmente especial visibilidade num momento especialmente relevante da queima de livros.

Este acto simbólico pretende, antes de mais, afastar uma forma de manifestação de opiniões divergentes em relação ao pensamento dominante ou único. Ou seja, mais do que afastar o pensador anulam-se os seus pensamentos.

A questão é que um livro é, como alguém referiu um dia, uma arma, mas uma arma que não mata nem fere, mas apenas leva a confrontar-nos com a opinião divergente, obrigando-nos a uma escolha, a seguir um caminho que pode não coincidir com aquele que é aceite num determinado contexto histórico.

Esta "lógica" é valida tanto durante o período da Inquisição como nos regimes de Estaline, Hitler, Mao ou no período do Estado-Novo, para citar apenas alguns exemplos.

A perseguição a todos aqueles que - mortos ou vivos - ousam questionar não se deve ao seu grande número mas simplesmente à força das suas ideias e convicções.

Hoje em dia, a falta da cultura de que falava António Lobo Antunes não é a que resulta de uma opressão do estilo ditatorial, mas sim do desinteresse e alheamento puro e simples das pessoas relativamente às principais questões da Sociedade.

A ignorância já não é a que resulta da falta de escolaridade ou da impossibilidade de acesso à informação e à cultura, mas sim da própria auto-exclusão - ou demissão - em relação àquilo que nos rodeia.

Para manter alguém longe da cultura deixou de ser necessário afasta-la das correntes de pensamento, passou simplesmente a dirigir a sua atenção para o acessório.

Sabemos hoje mais sobre a vida de um qualquer "herói" de uma novela ou de um "reality show" do que sobre os principais temas da nossa história contemporânea.

Este alheamento é, bem vistas as coisas, a "ferramenta" ideal para o poder político poder governar sem necessidade de suspensão do estado democrático ou a forma sublime de imposição de uma ditadura da inconsciência. Assim vão as cousas.