Numa entrevista recente a um canal de televisão António Lobo Antunes, porventura o maior escritor vivo português e certamente um dos maiores representantes da riquíssima história da literatura portuguesa, referiu a importância da cultura em qualquer sociedade.
Essa convicção corresponde, sem sombra de dúvida, a uma realidade histórica mas também a uma realidade actual de carácter indesmentível.
Não me parece, contudo, que a cultura de que António Lobo Antunes falava remeta necessariamente para uma noção de cultura normalmente associada a uma certa elite intelectual que frequenta os museus, as salas de concertos, etc.
Ainda que admitindo que também se poderia referir a esse "grupo" específico, creio que a cultura em causa é a cultura da informação, a cultura da capacidade de avaliar ou de efectuar juízos de valor, livres de constrangimentos ou de influências de terceiros.
A verdade histórica é que os poderes instituídos sempre lidaram mal com "esta" cultura.
Tal cultura é a de quem aprendeu a questionar e a questionar-se a si próprio e por arrastamento a questionar esses mesmos poderes.
No período da inquisição o conceito de herege incluía todos aqueles que se atreviam a expor as suas ideias em público, nomeadamente se essas ideias colidissem com a noção teológica dominante e essa perseguição atingia em particular os homens da ciência e da literatura, ou seja, aqueles poucos que conseguiam libertar da grilheta da ignorância geral, facilmente controlável pela lógica do medo.
Esta mesma perspectiva é igualmente a prática corrente em qualquer ditadura e tem normalmente especial visibilidade num momento especialmente relevante da queima de livros.
Este acto simbólico pretende, antes de mais, afastar uma forma de manifestação de opiniões divergentes em relação ao pensamento dominante ou único. Ou seja, mais do que afastar o pensador anulam-se os seus pensamentos.
A questão é que um livro é, como alguém referiu um dia, uma arma, mas uma arma que não mata nem fere, mas apenas leva a confrontar-nos com a opinião divergente, obrigando-nos a uma escolha, a seguir um caminho que pode não coincidir com aquele que é aceite num determinado contexto histórico.
Esta "lógica" é valida tanto durante o período da Inquisição como nos regimes de Estaline, Hitler, Mao ou no período do Estado-Novo, para citar apenas alguns exemplos.
A perseguição a todos aqueles que - mortos ou vivos - ousam questionar não se deve ao seu grande número mas simplesmente à força das suas ideias e convicções.
Hoje em dia, a falta da cultura de que falava António Lobo Antunes não é a que resulta de uma opressão do estilo ditatorial, mas sim do desinteresse e alheamento puro e simples das pessoas relativamente às principais questões da Sociedade.
A ignorância já não é a que resulta da falta de escolaridade ou da impossibilidade de acesso à informação e à cultura, mas sim da própria auto-exclusão - ou demissão - em relação àquilo que nos rodeia.
Para manter alguém longe da cultura deixou de ser necessário afasta-la das correntes de pensamento, passou simplesmente a dirigir a sua atenção para o acessório.
Sabemos hoje mais sobre a vida de um qualquer "herói" de uma novela ou de um "reality show" do que sobre os principais temas da nossa história contemporânea.
Este alheamento é, bem vistas as coisas, a "ferramenta" ideal para o poder político poder governar sem necessidade de suspensão do estado democrático ou a forma sublime de imposição de uma ditadura da inconsciência. Assim vão as cousas.
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