domingo, 28 de julho de 2013

Tempo de antena


Em tempos como o presente não é justo afirmar, para além de qualquer dúvida, que os efeitos da crise tocam de maneira equivalente todos os cidadãos facto que, podendo ser considerado um lugar-comum, não deixa ainda assim de menos verdade por causa disso.

Não se pense, contudo, que as linhas seguintes irão estender o referido lugar-comum ao ponto onde, normalmente, nestas ocasiões o foco central das atenções se dirige, qual azimute, nomeadamente os “grandes grupos económicos”, expressão generalista onde caberá uma verdadeira imensidão de interesses, normalmente encimados pelos bancos e respectivos banqueiros.

De facto, registo pelo menos uma actividade onde a empregabilidade cresceu a “olhos vistos” com o efeito da crise com a particularidade do trabalho desempenhado no exercício de tal cargo ser precisamente… a crise.

Não sendo meu propósito iniciar nesta altura uma “carreira” no domínio do suspense, esclareço, de forma imediata, que me refiro à profissão de comentador televisivo.

Ora, também aqui como em quase todas as actividades, se verifica uma tendência para a especialização ainda que, num sentido mais lato do termo, o tronco comum das suas intervenções seja precisamente o mesmo.

Por isso mesmo, esta “especialização” não é imediatamente perceptível tendo em conta que, não raras vezes, se assiste a um exercício "esforçado" para se perceber aquilo que fundamentalmente distingue a opinião de dois ou mais comentadores quando, precisamente, aquilo que se lhes pedia era precisamente a existência de uma certa forma de contraditório.

Desta forma, creio ser possível agrupar as plêiades de comentadores do nosso espectro televisivo em três linhas distintas: os comentadores-políticos, os políticos-comentadores e os nem-uma-coisa-nem-outra, mas que a tradição costuma designar de “opinion makers”, tradição essa que não ousarei contestar.

A primeira “classe” é, porventura, aquela que existirá há mais tempo e que é “chamada” de forma reiterada, normalmente em grupo (o tal suposto contraditório de opiniões “ livres e independentes”) e de forma indistinta entre canais de televisão, embora com alguma tendência para uma certa cristalização.

Em bom rigor a sua tarefa acaba por encontrar-se relativamente facilitada porque não resulta das suas opiniões qualquer compromisso futuro nem o escrutínio sobre as mesmas será tão incisivo que, num dado momento, possam ser confrontados com mais ou menos evidentes contradições de discurso.

É, portanto, uma forma de opinar que se esgota no preciso momento em que é formulada, não resultando da mesma qualquer utilidade prática, excepção feita – o que até nem é pouco – o de “ajudar” aqueles que os ouvem a formular as suas próprias opiniões ou consolidarem aquelas que já teriam, presumindo-se que difícil mesmo será mudar de opinião.

O segundo grupo de comentadores são os políticos-comentadores, figura bem mais recente no nosso espectro do comentário televisivo e aquela que mais cresceu neste período.

São essencialmente ex-governantes ou políticos em período de “travessia de deserto” que não podendo exercer cargo publico ou partidário mas não querendo, ainda assim, deixar de ter alguma visibilidade, surgem agora a comentar factos políticos, ainda que alguns deles remetam para momentos que, de forma mais ou menos directa, se relacionem precisamente com o período em que eram eles próprios o objecto principal dos comentários políticos.

A sua forma de actuação é, consequência a meu ver do que atrás é referido, feita quase sempre isoladamente, isto é, sem “direito” a contraditório, uma vez que tal está normalmente reservado ao plano do debate político o qual não é, por natureza, susceptível de ser confundido com a não menos nobre arte do comentário.

Precisamente por causa desta “característica” os comentadores-políticos tendem a não simpatizar com os políticos-comentadores, não forçosamente por constituírem uma forma de concorrência acrescida a si próprios, mas porque a mesma sendo livre é conscientemente tendenciosa.

O último grupo que entendi dever referenciar inicialmente ao qual associei a nomenclatura de “opinion makers” (à falta de melhor termo), remete para aquelas personalidades da vida pública portuguesa que mesmo dedicando parte substancial dos seus comentários sobre as questões da politica e da economia abordam, de igual modo e convicção, quase todos os temas da nossa Sociedade, entendendo-se neste conceito não apenas a Sociedade portuguesa mas quase tudo o que seja notícia um pouco pelo globo.

O resultado é, quase sempre, uma certa forma de “short opinion” sobre tudo e todos que, de forma curiosa, acaba por ter um efeito mais directo em quem os ouve ou escuta, sentidos que ainda que assim possa parecer não têm significado comum.

A explicação para este “sucesso” televisivo é quase de curiosidade colectiva, a partir do qual se “alimenta” a ideia de querer saber o que é que fulano ou sicrano pensam sobre determinado assunto e, de preferência, em poucas palavras e que qualquer um perceba.

Esta espécie de “fast food” do mundo dos comentários é, por isso mesmo, aquela que parece mais adequada aos tempos em que vivemos pois, pela sua ligeireza e ausência de qualquer denominador de compromisso, pois facilita o “trabalho” de uma Sociedade que parecendo cada vez menos interessada em pensar e decidir pela sua própria cabeça “entrega” a outros a tarefa de pensar e decidir por eles. Assim vão as cousas.

domingo, 21 de julho de 2013

Fim de ciclo


Um dos momentos mais complicados de quem, num determinado momento da sua vida, se “atreve” a transpor a linha das suas opiniões de uma fase meramente associada ao seu pensamento para qualquer outro dos sentidos é aquele em que temos que reconhecer que alguma das nossas convicções possa ter sido, de alguma forma, abalada ou mesmo totalmente ultrapassada.

Tal situação só acontece, portanto, quando essas mesmas convicções colidem frontalmente com a firmeza com que, habitualmente, procuro transparecer para quem, de forma mais ou menos constante, toma contacto com estas breves letras que transformam o meu pensamento em texto, crónica ou dissertação, conforme se entenda por mais adequado descreve-las.

Ora, precisamente num dos referidos escritos tive ocasião de honrar a coerência intelectual e de vida de algumas personagens da nossa política e cultura, entre as quais se encontrava, como não podia deixar de ser, o Dr. Mário Soares.

Acontece que, os últimos tempos ou mais exactamente as mais recentes intervenções públicas de tão importante figura da politica portuguesa do século XX, têm levado a uma inflexão da minha convicção relativamente à supracitada coerência.

Mas, vamos por partes.

O Dr. Mário Soares é e será sempre uma figura incontornável da história contemporânea de Portugal por motivos tão vastos que certamente tão poucas e frágeis linhas não se encontram em condições de sintetizar com a justiça que tais motivos determinam.

Assim sendo, limito-me a remeter para o seu papel determinante na conquista da liberdade após 48 anos de ditadura ou ainda, nesse mesmo contexto, a intervenção que levaria ao subestimado evento do 25 de Novembro que, em bom rigor, impediu que uma ditadura fascista levasse, em pouco tempo, a uma outra de cariz marxista.

Pelo meio fica a sua intervenção na chamada descolonização que é hoje injustamente criticada, não pela sua forma, mas por criar a convicção que essa mesma descolonização não era já nessa altura totalmente inevitável face ao perpetuar de um conflito que não poderia ser ganho no campo de batalha mas que já havia sido perdido muito anteriormente no preciso momento em que o ditador decidiu subjugar pela força das armas a vontade das colónias de então.

Deu cara e corpo pelas suas convicções como Primeiro-Ministro num momento de certa forma coincidente com aquele que agora se vive pela via da necessidade de um resgate externo do FMI (a troika só “nasceria” muitos anos mais tarde) que curiosamente determinou, então como agora, uma receita de austeridade que, cada vez mais, é contestada quanto aos respectivos ditames mas, sobretudo, quanto aos seus resultados.

Foi Presidente da República durante dois mandatos sucessivos de forma tão incontestada e popular que até a sua oposição se absteve de apresentar candidato na segunda eleição.

Viajou (muito) e criou o conceito de “Presidência Aberta”, marcando de forma decisiva a sua presença internamente e internacionalmente, saindo pela “porta grande” da cena política, como estadista que de facto é.

Talvez o primeiro “sinal” de alerta para uma determinada predisposição para alterar esta espécie de “título” de Senador vitalício tenha surgido quando entendeu voltar a concorrer à Presidência da República contra Cavaco Silva mas, em particular contra Manuel Alegre, com quem havia (aparentemente) rompido uma amizade de longa data.

Esta decisão, tomada a meu ver sem o necessário pragmatismo, não só “custou” uma derrota eleitoral da “sua” esquerda como espelhou para si próprio a diminuição da sua base de apoio, pouco convencida da possibilidade de alguém, com a sua idade, poder assegurar o cargo mais elevado na Nação durante a totalidade do mandato.

Esta “realidade” que, porventura, o próprio não anteciparia tem, contudo, vindo a acentuar-se nos últimos tempos fruto das intervenções públicas que insiste em manter, não obstante a sua provecta idade, mas que revelam uma preocupante tendência para a transmissão de mensagens que facilmente resvalam para extremismo, algo que manifestamente não faz parte da sua “genética” política.

O resultado de tais intervenções tem sido a progressiva desvalorização do significado das mesmas por parte dos seus “seguidores tradicionais” e, sobretudo, um movimento não menos extremista de reacção por parte daqueles que sempre o criticaram.

Ora, quando a crítica resulta da oposição às convicções políticas podemos, com segurança, entender que tal se deve ao normal “jogo” da ideias. Contudo, quando as mesmas, como agora se verifica, pretendem questionar não o presente mas o passado e a importância do Dr. Mário Soares na vida política portuguesa, o caso ganha consistentemente um outro relevo.

A pergunta que fica é, portanto, qual a necessidade do Dr. Mário Soares em expor-se publicamente desta forma numa fase tão avançada da sua vida em que nada tem a provar?

Alguns poderão invocar que tal se deve à sua permanente (e fundamental) necessidade de representar uma voz “audível” perante a opinião pública em linha com o que sempre fez ao longo da vida, sem receio pelas respectivas consequências.

Outros remetem certamente para uma redução da sua capacidade de discernimento em função da idade, tendo mesmo surgido (na lógica do extremismo) quem o tenha apelidado de inimputável, ou seja, alguém que já não se encontra na posse das respectivas faculdades mentais e com capacidade de decisão.

Acredito, pessoalmente, que a resposta estará numa espécie de síntese das duas variáveis, eliminando, contudo, os elementos irracionais que cada um acaba por conter.

Para que, em circunstância alguma, a segunda variável possa claramente ser demonstrada, é fundamental que o Dr. Mário Soares reduza o actual nível de exposição mediática e o “ruido” que se vai espalhando.

É nesta “etapa” que a união da sua própria consciência com a acção daqueles que o acompanham serão fundamentais para essa “tarefa”, para que os tempos conturbados que vivemos e a falta de valores que parecem cada vez mais ocupar um lugar na nossa Sociedade, não manchem um percurso decisivo na história da democracia portuguesa e a sua eminente figura de Estadista. Assim vão as cousas

domingo, 14 de julho de 2013

Universo paralelo

As viagens no tempo têm sido, ao longo dos anos, um vasto campo de expansão do nosso imaginário, resultando de tal facto a aspiração teórica de uma mesma pessoa poder transpor o respectivo estado físico entre épocas distintas, mais ou menos próximas.

Não sendo, até prova em contrário, demonstrável fisicamente a viabilidade de tal transposição corpórea, este tema tem, sobretudo, feito as delícias do mundo da literatura, nomeadamente na denominada ficção científica.

É precisamente neste contexto que as linhas que se seguirão deambularão entre as dimensões temporais conhecidas – passado, presente e futuro – seguindo dessa forma uma mesma personagem, na circunstância do Professor Cavaco Silva, iniciando-se precisamente no tempo presente.

Ora neste tempo o Professor Cavaco Silva entendeu dirigir-se aos portugueses, após uma panóplia de conversas bilaterais com os partidos políticos, organizações patronais e centrais sindicais para, de um modo capaz de surpreender tudo e todos, anunciar o seu próprio plano para o país, a que repetidamente denominou de “salvação nacional”.

Em si mesmo, tal expressão deveria ser o “leit motiv” necessário para se perceber que algo que necessita de ser salvo será porque – por definição – estará em perigo.

Ora, se algo se encontra nessa situação estranha-se que, durante os fastidiosos minutos de uma espécie de “oração de sapiência”, não tenha sido referida qualquer nota de registo critico para o governo actualmente em funções que, apesar de dispor de uma base parlamentar que lhe confere uma maioria absoluta, entrou em rotura consigo próprio, originando aquilo que se convencionou chamar de “crise politica”.

A referida “salvação nacional” passaria, nesse caso, por um apelo a uma coligação dos denominados partidos do “arco da governação” que, no caso concreto, são os precisamente os mesmos que assinaram o memorando de entendimento com a troika.

Esta coligação teria, contudo, um prazo de validade coincidente com o final do plano de assistência, lá para Junho de 2014, momento a partir do qual, o país entraria em período eleitoral, fruto – presume-se – da demissão do Governo, não ficando claro se por sua iniciativa ou por via parlamentar.

Torna-se, pois, necessário efectuar a primeira viagem no tempo e recuar ao mês de Março de 2011 quando, ao tomar posse para um segundo mandato, Cavaco Silva resolveu desferir um “ataque” velado ao Governo minoritário que dirigia então os destinos do país, assinando de forma indelével uma espécie de “sentença de morte” a esse mesmo Governo.

Independentemente das motivações para tal, a verdade é que quem assim falou não podia ignorar que a consequência de uma tal posição publicamente assumida seria, naquela mesma circunstância, o arrastar o país para eleições mas, sobretudo e tal como veio a suceder, determinar a necessidade de um pedido de “assistência financeira” a Portugal, do qual resultou o tristemente célebre “memorando de entendimento”.

Não terá, nessa ocasião, ocorrido ao renovado Presidente da República, aspirar com as suas palavras a um amplo entendimento entre os referidos partidos ou, no mínimo, dos dois principais, nem que tal seria necessário justamente pelo mesmo critério da “salvação nacional”.

Contudo, tal momento seria precisamente aquele em que, provavelmente, melhor estariam reunidas as condições para que esse mesmo entendimento pudesse ter lugar pois coincide precisamente com a única circunstância em que os “tais” partidos partiam de uma base comum de entendimento, isto é, sobre o conteúdo programático do memorando, restando “apenas” que se entendessem relativamente às medidas necessárias à sua implementação.

Não foi este o desígnio de Cavaco Silva e o que se seguiu foi também aqui uma espécie de viagem temporal para o futuro até ao tempo presente.

Ora, neste particular domínio resta-nos efectuar a “viagem” para um tempo que se situa além do actual ao qual o comum dos mortais apenas chegará quando os dias, meses e anos se tiverem sucedido mas que, no caso vertente, não será necessário uma vez que uma espécie de “cone do tempo” levar-nos-á em seguida a esse mesmo futuro.

Mais precisamente situar-nos-emos em Junho de 2014 altura em que, de acordo com um calendário pré-definido, Portugal deixará de “beneficiar” de assistência externa da troika, regressando autonomamente aos “famosos” mercados.

Porém, nessa mesma ocasião, se perceberá que Portugal não terá condições de o fazer pagando pelas suas necessidades de financiamento juros muito acima da sua capacidade de os suportar em termos futuros, ainda que sob uma espécie de protecção do BCE.

Como tal e porque a politica do “custe o que custar” levada a cabo no passado originou uma “espiral recessiva” do qual resultou uma incapacidade de crescimento do PIB, do emprego ou mesmo da dívida pública, Portugal terá novamente necessidade de recorrer a um novo plano de assistência, ainda que o mesmo possa airosamente deixar de se chamar de “resgate” passando a adoptar uma qualquer outra nomenclatura, porque nestas coisas dos nomes, não há passagem do tempo que altere o seu verdadeiro significado.

A “salvação nacional” não se cumprirá porque o “chamamento” do PS por parte de Cavaco Silva para a “fotografia final” não tem quaisquer condições de viabilidade na medida em que, tal apelo, teria como pressuposto a adesão “voluntária” às decisões políticas tomados pelos outros dois partidos, nas quais não foi parte em momento algum, não o sendo portanto igualmente nas respectivas consequências.

A tentativa de Cavaco Silva criar um governo de iniciativa presidencial coincidente temporalmente com o final da presença da troika em território português, colide frontalmente com a realidade portuguesa, nomeadamente as naturais aspirações da coligação em terminar o respectivo mandato no seu final e da oposição derrubar esse mesmo governo antes de tal data.

Por isso mesmo, não há como efectuar uma ultima “deslocação” na dimensão espaço-tempo e regressar ao tempo presente para desse modo concluir que as circunstâncias actuais determinam algo que Cavaco Silva parece querer ignorar – embora certamente não o ignore – é que aqueles que têm sido os maiores prejudicados com a actual situação são aqueles que mais aspiram à mudança célere das politicas que nos “conduziram” a essa mesma situação.

A generalidade da sociedade portuguesa deixou simplesmente de acreditar no sistema político e de se rever na respectiva classe politica à luz do pressuposto que esta já não respeita ou sequer representa essa mesma Sociedade.

E é precisamente por aqui que é possível afirmar que jamais poderá haver verdadeiramente alguma “salvação nacional” que não respeite as premissas básicas enunciadas por Lincoln no distante ano de 1863, isto é, que a mesmo não assente nos princípios da democracia representativa. Seja no passado, no presente ou no futuro. Assim vão as cousas.

domingo, 7 de julho de 2013

Comer, calar ou chorar por mais


Com o distanciamento temporal que gosto de colocar relativamente aos temos analisados semanalmente, algo que outro objectivo não tem que não seja o de criar as condições de distanciamento relativamente ao momento em que os factos se verificaram, entendo ser agora oportuno analisar os resultados práticos da acção do autodenominado movimento “Que se lixe a troika”, nomeadamente a acção de protesto que teve lugar em 2 de Março último.

Deixando de lado a discussão pífia que se seguiu relativamente ao número de participantes nessa mesma acção, sobretudo ao nível das redes sociais, é inegável que a adesão foi extremamente significativa e, de igual modo, que a mesma revela uma acentuada politização da sociedade portuguesa.

Chamo-lhe politização e não partidarização na medida em que aquilo que mais se viu e ouviu foram sinais evidentes de descontentamento com a situação politica e social de Portugal ao invés de um manifesto apoio a qualquer estrutura partidária, independentemente da participação de elementos da oposição entre os manifestantes e uma ou outra bandeira a “recordar” a sua presença.

Basicamente, o “discurso” mudou e o sinal evidente disso mesmo é a crítica transversal aos diversos órgãos de soberania, incluindo a figura do Presidente da República, cada vez mais transformado numa figura “sem voz” seja entre os cidadãos seja entre o próprio Governo.

Por outro lado, o recurso sistemático a “símbolos” de um passado não tão distante como isso, nomeadamente o entoar da canção que a revolução de Abril, haveria de eternizar ou chavões que nos “lembram” que o “povo é que mais ordena” remetem antes de mais para uma concepção de direitos e liberdades cívicas do que propriamente para o habitual discurso partidário.

Ora, tal como tive ocasião de referir noutras ocasiões, o “problema” deste tipo de acções não é certamente o da sua capacidade de mobilização, a qual é cada vez mais facilmente demonstrável, mas para o respectivo “day after”, ou seja, a materialização prática dentro do sistema político de uma mais do que evidente oposição às denominadas “políticas de austeridade”.

A consequência lógica deveria ser o surgimento de um movimento dentro da sociedade que fizesse a rotura e ao mesmo tempo a síntese entre as estruturas partidárias convencionais que, em virtude de um movimento de rotatividade politica ou de permanente posicionamento de “anti-poder”, deixaram de ser as referências naturais dos cidadãos, nomeadamente aqueles que, como eu, “insistem” em manter o ritual de cumprir o dever cívico de votar.

Consciente que dificilmente, nos tempos mais próximos, surgirá um tal movimento catalisador das vontades e insatisfações colectivas manteremos, com elevado grau de certeza, uma perspectiva da rotatividade forçada das duas principais forças políticas, não em função do maior ou menor grau de confiança nos mesmos mas sobretudo com uma motivação associada à reprovação do executivo anterior.

O “problema” é que, tal como se tem vindo a notar, de forma absolutamente preocupante, nalguns países europeus – não necessariamente os mais pobres ou endividados – é uma deriva para o anti-sistema, isto é, para estruturas partidárias que nada tendo a oferecer aos seus eleitores em termos de modelo de política económica ou financeira, optam por um discurso extremista e isolacionista em que o “inimigo” passa tanto por ser a própria classe política mas também os “alvos” tradicionais destes movimentos, nomeadamente os estrangeiros.

Recordemo-nos, para quem ainda não o saiba, que foi precisamente este o contexto que no final dos anos vinte, após o tristemente célebre ano de 1929, que começou a surgir na Alemanha um movimento politico “nacional-socialista” que haveria de levar ao poder um dos mais carismáticos líderes da história da humanidade responsável pela morte – de acordo com os dados mais recentes – de 20 milhões de seres humanos.

Assim sendo, a “solução” para esta encruzilhada só poderá passar, de acordo com o meu entendimento, pelo surgimento de uma estrutura partidária que faça uma espécie de síntese de uma certa social-democracia de esquerda cuja matriz é possível de encontrar nos países nórdicos, algo que, convenhamos, não parece muito provável mesmo a médio prazo.

A não ser assim, então terá forçosamente de passar um crescimento do nível de exigência por parte dos cidadãos, seja no aumento da participação cívica eleitoral seja na contestação pública sempre que necessária, mas sobretudo na criação de uma consciência de que os programas de Governo devem assentar em bases programáticas reais e não em falsas premissas que visam cativar os votos mas que são rapidamente “esquecidas” após a realização do acto eleitoral.

Se legitimidade democrática resulta do voto popular não é menos verdade que o incumprimento do programa eleitoral por um qualquer governo cria uma evidente situação de ilegitimidade para governar, e esta é precisamente a natureza do “divórcio” consumado entre governantes e governados em Portugal. Assim vão as cousas.