Um dos momentos mais
complicados de quem, num determinado momento da sua vida, se “atreve” a
transpor a linha das suas opiniões de uma fase meramente associada ao seu
pensamento para qualquer outro dos sentidos é aquele em que temos que
reconhecer que alguma das nossas convicções possa ter sido, de alguma forma,
abalada ou mesmo totalmente ultrapassada.
Tal situação só
acontece, portanto, quando essas mesmas convicções colidem frontalmente com a
firmeza com que, habitualmente, procuro transparecer para quem, de forma mais
ou menos constante, toma contacto com estas breves letras que transformam o meu
pensamento em texto, crónica ou dissertação, conforme se entenda por mais
adequado descreve-las.
Ora, precisamente num
dos referidos escritos tive ocasião de honrar a coerência intelectual e de vida
de algumas personagens da nossa política e cultura, entre as quais se
encontrava, como não podia deixar de ser, o Dr. Mário Soares.
Acontece que, os últimos
tempos ou mais exactamente as mais recentes intervenções públicas de tão
importante figura da politica portuguesa do século XX, têm levado a uma
inflexão da minha convicção relativamente à supracitada coerência.
Mas, vamos por partes.
O Dr. Mário Soares é e
será sempre uma figura incontornável da história contemporânea de Portugal por
motivos tão vastos que certamente tão poucas e frágeis linhas não se encontram
em condições de sintetizar com a justiça que tais motivos determinam.
Assim sendo, limito-me a
remeter para o seu papel determinante na conquista da liberdade após 48 anos de
ditadura ou ainda, nesse mesmo contexto, a intervenção que levaria ao
subestimado evento do 25 de Novembro que, em bom rigor, impediu que uma
ditadura fascista levasse, em pouco tempo, a uma outra de cariz marxista.
Pelo meio fica a sua
intervenção na chamada descolonização que é hoje injustamente criticada, não
pela sua forma, mas por criar a convicção que essa mesma descolonização não era
já nessa altura totalmente inevitável face ao perpetuar de um conflito que não
poderia ser ganho no campo de batalha mas que já havia sido perdido muito
anteriormente no preciso momento em que o ditador decidiu subjugar pela força
das armas a vontade das colónias de então.
Deu cara e corpo pelas
suas convicções como Primeiro-Ministro num momento de certa forma coincidente
com aquele que agora se vive pela via da necessidade de um resgate externo do
FMI (a troika só “nasceria” muitos anos mais tarde) que curiosamente determinou,
então como agora, uma receita de austeridade que, cada vez mais, é contestada
quanto aos respectivos ditames mas, sobretudo, quanto aos seus resultados.
Foi Presidente da
República durante dois mandatos sucessivos de forma tão incontestada e popular
que até a sua oposição se absteve de apresentar candidato na segunda eleição.
Viajou (muito) e criou o
conceito de “Presidência Aberta”, marcando de forma decisiva a sua presença
internamente e internacionalmente, saindo pela “porta grande” da cena política,
como estadista que de facto é.
Talvez o primeiro
“sinal” de alerta para uma determinada predisposição para alterar esta espécie
de “título” de Senador vitalício tenha surgido quando entendeu voltar a
concorrer à Presidência da República contra Cavaco Silva mas, em particular
contra Manuel Alegre, com quem havia (aparentemente) rompido uma amizade de
longa data.
Esta decisão, tomada a
meu ver sem o necessário pragmatismo, não só “custou” uma derrota eleitoral da
“sua” esquerda como espelhou para si próprio a diminuição da sua base de apoio,
pouco convencida da possibilidade de alguém, com a sua idade, poder assegurar o
cargo mais elevado na Nação durante a totalidade do mandato.
Esta “realidade” que,
porventura, o próprio não anteciparia tem, contudo, vindo a acentuar-se nos
últimos tempos fruto das intervenções públicas que insiste em manter, não
obstante a sua provecta idade, mas que revelam uma preocupante tendência para a
transmissão de mensagens que facilmente resvalam para extremismo, algo que
manifestamente não faz parte da sua “genética” política.
O resultado de tais
intervenções tem sido a progressiva desvalorização do significado das mesmas
por parte dos seus “seguidores tradicionais” e, sobretudo, um movimento não
menos extremista de reacção por parte daqueles que sempre o criticaram.
Ora, quando a crítica
resulta da oposição às convicções políticas podemos, com segurança, entender
que tal se deve ao normal “jogo” da ideias. Contudo, quando as mesmas, como
agora se verifica, pretendem questionar não o presente mas o passado e a
importância do Dr. Mário Soares na vida política portuguesa, o caso ganha
consistentemente um outro relevo.
A pergunta que fica é,
portanto, qual a necessidade do Dr. Mário Soares em expor-se publicamente desta
forma numa fase tão avançada da sua vida em que nada tem a provar?
Alguns poderão invocar
que tal se deve à sua permanente (e fundamental) necessidade de representar uma
voz “audível” perante a opinião pública em linha com o que sempre fez ao longo
da vida, sem receio pelas respectivas consequências.
Outros remetem
certamente para uma redução da sua capacidade de discernimento em função da
idade, tendo mesmo surgido (na lógica do extremismo) quem o tenha apelidado de
inimputável, ou seja, alguém que já não se encontra na posse das respectivas
faculdades mentais e com capacidade de decisão.
Acredito, pessoalmente,
que a resposta estará numa espécie de síntese das duas variáveis, eliminando,
contudo, os elementos irracionais que cada um acaba por conter.
Para que, em
circunstância alguma, a segunda variável possa claramente ser demonstrada, é
fundamental que o Dr. Mário Soares reduza o actual nível de exposição mediática
e o “ruido” que se vai espalhando.
É nesta “etapa” que
a união da sua própria consciência com a acção daqueles que o
acompanham serão fundamentais para essa “tarefa”, para que os tempos
conturbados que vivemos e a falta de valores que parecem cada vez mais ocupar
um lugar na nossa Sociedade, não manchem um percurso decisivo na história da
democracia portuguesa e a sua eminente figura de Estadista. Assim vão as cousas
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