domingo, 22 de dezembro de 2013

A falsa ideologia

O Governo de matriz conservadora de Mariano Rajoy aprovou na passada semana uma alteração legislativa à lei do aborto que havia sido, por seu turno, anteriormente revista pelo anterior primeiro ministro em 2010, retomando dessa forma as bases de um outro diploma de 1985, a partir do qual a práctica do aborto fica limitado a uma necessidade "por causa de um grave perigo de vida ou da saúde física e psicológica da mulher ou que a gravidez tenha sido consequência de um delito contra a liberdade ou integridade sexual da mulher".

Este tema, que em Portugal teve igualmente um desenvolvimento legislativo relativamente recente durante a anterior legislatura, integra o elenco dos denominados "temas fracturantes" por configurar uma questão que dificilmente colocará alguém na posição de indiferença mas, bem pelo contrário, remete para extremos bem opostos a opinião que cada um tem sobre o mesmo.

Creio, ainda assim e de forma antagónica, poder afirmar que o conceito de aborto é, em si mesmo, um conceito bastante aglutinador de uma mesma opinião, na medida em que entendo que dificilmente alguém será - em abstracto - favorável à sua práctica.

O problema é que a questão é muito mais do que abstracta e tem contornos bem concretos para que, de facto, exista uma profunda divergência quanto à sua admissibilidade.

Pessoalmente enumero - pelo menos - duas circunstâncias que determinam o epíteto de "fracturante" de que é apelidado este tema.

Em primeiro lugar a questão em si mesmo remete para a matriz cristã da sociedade ocidental que foi "ensinada" (e bem) a considerar o direito à vida como um direito sagrado (literalmente) sendo essa concepção de vida estendida até ao momento da concepção.

A progressiva laicização dos Estados aliado à igualmente progressiva alteração do posicionamento das pessoas face à igreja - por vezes em resultado de uma certa radicalização/ortodoxia do discurso "oficial" - implicou um afastamento a esse mesmo discurso com a consequente opção pelo ateísmo ou agnosticismo, sendo esta em que - como é sabido - me revejo pessoalmente.

Em segundo lugar surge a politização do tema, passando por uma tendência/convicção de que o tema do aborto é uma "coisa" de esquerda que - vá lá saber-se porquê - é genericamente vista como favorável ao aborto ao passo que a direita terá uma opção ideológica em sentido contrário.

Também aqui admito que a razão desta aparente separação tem sobretudo a ver com a matriz conservadora de alguns sectores da direita em oposição à tendencial matriz mais liberal (não no sentido económico do termo) de alguma esquerda, também ela normalmente associada a uma menor ligação às "coisas" da igreja, presunção que, creio, não corresponder inteiramente à verdade nem sequer naquilo que diz respeito à esquerda mais radical.

Poderia ainda acrescentar uma terceira circunstância às duas anteriores que resulta do facto de se entender - por vezes - que se trata de um tema "das mulheres" e que aos homens é vetado o direito de decidir sobre o tema pelo simples facto da natureza não lhes ter facultado a mesma capacidade de poder gerar novas vidas.

Esta última "visão" é, a meu ver, a mais falaciosa de todas, pois para a concepção não conseguiu ainda a ciência criar condições para que a vida possa ser gerada sem o "recurso" à fertilização - mesmo que artificial - do óvulo por parte de uma célula reprodutora masculina, de nome espermatozóide.

Resumidas as duas questões (que afinal são três) que entendo contribuírem - de certa forma interligadas - para a profunda divisão que existe em quase todas as sociedades sobre este tema é chegado o momento de eu próprio exprimir a minha opinião sobre o mesmo.

Deixando de lado as questões que (ainda assim) são mais ou menos consensuais nesta matéria e que remetem para a admissibilidade do aborto em casos de violação ou de malformação do feto ou de perigo de vida para a mãe, creio que a questão não pode nem deve ser vista - racionalmente - do ponto de vista da religião, da política ou de se poder ou não "dar à luz".

A questão é a da percepção que cada um de nós tem sobre a maior ou menor visibilidade relativamente ao tema.

O tema do aborto não é recente, mas durante muito tempo andou "escondido" por detrás da vergonha e da ausência de qualquer dado estatístico que permitisse aferir quantas eram as mulheres que efectivamente recorriam a essa práctica e, não menos importante, em que condições é que o faziam.

Por isso mesmo, porventura fazendo jus ao ditado de que aquilo que os olhos não vêm o coração não sente, quando o tema se tornou assunto de Estado as pessoas foram imediatamente colocadas perante a necessidade de escolha face um tema que sabiam existir mas sobre o qual não se falava abertamente.

Se a este facto se juntar a constatação de que em diversos países a práctica de aborto é considerada simplesmente um crime, percebe-se que existem mais do que motivos para que o tema "não exista" oficialmente em tais territórios.

Ora, quando tal sucede, as pessoas acabam, conforme referi, por ter de fazer opções e, nesse sentido, estarão certamente inclinadas a fazê-lo em função das suas convicções religiosas, politicas e mesmo da sua condição de mulher ou de homem.

Quando um qualquer Estado faz uma opção pela descriminalização do aborto ou o alargamento da tipificação das circunstâncias em que o mesmo pode ocorrer (incluindo o prazo) chamando a si a responsabilidade de zelar pela saúde de quem decide recorrer ao aborto, abre uma "ferida" nas convicções de cada um e, talvez por isso mesmo, tenda a querer vincular os cidadãos a essa mesma decisão por via da realização de referendos.

Por isso mesmo a decisão tomada pelo Governo Espanhol - independentemente do maior ou menor apoio à mesma - não implicará a diminuição do número de abortos, porque eles voltarão a ser realizados de forma "escondida" em condições precárias ou, no limite, passarão a ser efectuados noutros países onde a legislação seja menos restritiva.

Por tudo isto a minha convicção é simples. O que está em causa não são as nossas convicções sobre o significado do direito à vida de um feto, o que está em causa é a certeza que temas há que não é a mera proibição que os elimina ou, dito de outra forma, não é por cada um de nós fechar o olhos com o objectivo de não ver o que se passa à nossa volta que a vida mas também a morte deixam de existir. Assim vão as cousas. 

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