domingo, 8 de setembro de 2013

Cortina de fumo

Há uns meses atrás exerci - conscientemente, diga-se - sobre mim próprio uma espécie de auto-flagelação ao visionar, de forma integral, um filme (?) português intitulado "A Vida Privada de Salazar".

O enredo do referido filme (?) remetia para a biografia do ditador, desde fase prévia à ascensão ao poder e a fase posterior a esse mesmo momento, correndo de forma apressada as diversas etapas da vida do homem de liderou os destinos do país com mão de ferro, durante quase meio século, até chegar aquela espécie de apoteose final coincidente com a "célebre" queda da cadeira.

Mas afinal o que é torna, a meu ver, este inenarrável exercício de pretensa cinematografia biográfica tão absurdamente mau?

Será a minha predisposição para um certo desconforto perante qualquer assunto que aborde a temática do período da ditadura? Não creio, caso contrário não teria sequer visto o filme (?), pelo que não é em si o tema que me criou tamanha sensação de tempo perdido.

Será, porventura, o fraco argumento do filme (?) aliado a igualmente fracas interpretações dos actores escolhidos? Também sou forçado a declinar esta hipótese, até porque a actor principal surgiu mais recentemente a encarnar uma personagem claramente distinta - a de Jesus Cristo - porventura numa espécie de redenção do seu próprio pecado de ter participado anteriormente na supracitada película.

Resta-me então a convicção que a minha incapacidade para valorizar adequadamente este filme (?) se deve ao facto do mesmo suscitar uma visão distorcida da realidade, a qual resulta da errada interpretação histórica que, ao invés de transportar a vida de Salazar para o cinema deveria, antes de mais, permitir que essa biografia fosse apenas parte de uma Sociedade que era "comandada" por essa mesma vida.

É que o erro de análise que tem vindo a ser seguido por quem tenta ilustrar a "vida privada" de Salazar é pressupor que essa mesma "vida" tem, em si mesmo, algo que justifique um enredo suficientemente atractivo para poder ser considerado como filme.

Nada disso. O referido filme (?) limita-se a passar quase vertiginosamente pela tal "vida" sem qualquer espécie de coerência, nem tão-pouco criando no espectador a sensação de, dessa forma, conhecer algo mais sobre o ditador ou mesmo, conforme se impõe nestas circunstâncias, pela introdução de um qualquer elemento de controvérsia que, mesmo carecendo de total capacidade probatória, não deixaria de "lançar" uma centelha de "algo de novo".

Talvez por isso mesmo, alguns historiadores, escritores mas, sobretudo, alguns canais generalistas de televisão procurem frequentemente "olhar" para o ditador não pela sua vida em si mesmo - claramente isenta de interesse documental - mas perante aqueles que o rodeavam (ou rodearam) durante o respectivo "reinado".

Exemplo flagrante de tal convicção são as sucessivas entrevistas e/ou edições literárias (?) sobre as mulheres que acompanharam o ditador, nomeadamente as suas "criadas", normalmente alvo de uma atenção muito peculiar, porventura na procura de alguma imagem menos conhecida do próprio ditador , como se através delas se espreitasse por uma espécie de buraco da fechadura. 

No entanto, aquilo que se constata é que mesmo essas pessoas que lidaram com o ditador de forma mais próxima do que qualquer outra pessoa (pelo menos na perspectiva de um ambiente mais familiar) nada referem que altere substancialmente a visão de um total vazio de interesse naquilo que, se fosse possível, seria visível para lá da tal fechadura.

Contudo, a mais preocupante "mensagem" que acabam por transmitir é a imagem das suas próprias vidas, isoladas de um "mundo" opressor que, aparentemente, a elas nada diz ou eventualmente até preferem ignorar, criando uma imagem bucólica de uma "sociedade" que não tinha qualquer enquadramento real com a realidade social do resto do país.

É aqui que reside o "perigo" de filmes (?) como "A Vida Privada de Salazar", isto é, o de traçaram para as gerações nascidas após o 25 de Abril uma imagem distorcida da realidade que resulta da falsa presunção de que o ditador era, afinal, um cidadão como qualquer outro, líder dos destinos de uma Sociedade que seria, ela própria, igual a qualquer outra. 

Este efeito só poderá ser "contrariado" se, aqueles que agora se propõem descrever a vida privada de quem, afinal, pouco ou nada resta para conhecer, efectuem igual "exercício" relativamente a todos aqueles cujas vidas privadas foram subjugadas pela "vida pública" de Salazar, ou seja, aquela que se encontra sobejamente documentada e testemunhada, ou seja, aquela que há-de ser, para sempre, descrita como a de uma ditadura. Assim vão as cousas.

  




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