domingo, 24 de março de 2013

Golpe de teatro


Uma das formas mais ancestrais de manifestação cultural é, sem sombra de dúvida, o teatro.

É fácil perceber o motivo para que assim sempre tenha sido pois a sua materialização pressupunha unicamente a existência de um texto e dos correspondentes actores.

No essencial, o teatro sempre se dividiu em duas grandes “famílias”, nomeadamente a tragédia e a sua oposta cara-metade, a comédia.

Em termos práticos e com mais ou menos derivações a 5ª arte manteve a quase exclusividade das formas de representação pública até ao século XX altura em que o exponencial crescimento tecnológico “apresentou” ao Mundo novas formas de fácil assimilação cultural, com o cinema e, acima de tudo, a televisão a encabeçar esse movimento.

A partir desse momento, de acordo com o meu entendimento, o teatro passou a ser o “palco” das classes mais baixas em oposição aos seus “competidores” que confluíam em si as famílias com mais posses, nomeadamente ao ponto de permitir a aquisição de uma das ditas “caixas” que mudaram o mundo.

Em Portugal, como não podia deixar de ser, esta “separação de classes” durou até muito mais tarde do que na generalidade dos seus parceiros europeus, fruto da elevada desigualdade social existente.

Assim, tirando o fenómeno da televisão, co-existiam sobretudo na Capital os grandes palcos de cinema e casas de teatro, quase exclusivamente dedicadas à apresentação dos grandes clássicos da literatura portuguesa e de uma outra forma de expressão teatral a que se convencionou chamar de Teatro de Revista e que se encontrava essencialmente confinada a um espaço bem no centro de Lisboa.

Este espaço, uma espécie de Broadway à portuguesa, adoptou a designação oficial de Parque Mayer por se situar precisamente no espaço adjacente ao palácio com o mesmo nome, e sempre se evidenciou por ser um local de animada tertúlia em tudo aquilo que um tal local pode proporcionar a uma sociedade genericamente pouco dada a manifestações culturais.

Este Teatro de Revista encontrava-se configurado como a forma privilegiada para a difusão de “mensagens” com forte pendor alegórico, com recurso a uma simbologia de cariz popular, que permitia a sua fácil assimilação por parte dos espectadores, de certa forma facilitado pelo regime de então que “fechava os olhos” a um formato de textos que “escapava” de forma subliminar aos censores.
A democratização da sociedade trouxe, contudo, também a democracia de acesso a bens que até então se encontravam vedados a uma parte substancial da população, e a televisão entrou em força nos lares dos portugueses, que deixavam dessa forma de necessitar de sair de casa para tomar contacto com as diversas formas de manifestação culturais, desde logo com o cinema e o teatro como principais “lesados” de tal comodismo.

Associado a este facto verificou-se igualmente o alargamento do espectro da “oferta” teatral que passou a explorar novos contextos quer literários quer cénicos, do qual decorreu a invariável deriva intelectual.

Desta constatação resultou, como não podia deixar de ser, o declínio e a degradação dos espaços, sendo que as grandes salas de cinema cederam o seu lugar a espaços menores, tendo sido progressivamente ocupados por actividades nada orientadas para a cultura ou, inclusive, substituídos por novos edifícios e, consequentemente, novas funcionalidades, mantendo, por vezes, a mesma nomenclatura como que lembrando a todos que em tempos ali houvera um espaço de referência.

Mas se nas salas de cinema o “filme” mudara, o mesmo já não se verificava no Parque Mayer, o qual se mantinha fiel às características da forma teatral que o celebrizara, fidelidade essa que não era acompanhada pelo factor tempo que acentuava em igual medida o “charme” do local mas ao mesmo tempo a sua acentuada degradação.

Nesse aspecto a própria alteração demográfica da Capital contribuiu em grande medida para este progressivo afastamento, face à mais do que evidente redução do número de cidadãos aí residentes, deslocalizados para as cidades “dormitório” circundantes da Capital.

Contudo, a “machadada” final nas possíveis perspectivas futuras deste espaço foi a politização do mesmo, isto é, a partir do momento em que passou a ser a “bandeira” dos candidatos à presidência do mais importante município português, que invariavelmente “esbarrava” com uma penosa realidade de falta de planeamento, fundos e até mesmo em negócios de duvidosa legalidade.

Não deixa, portanto, de ser curioso que o Parque Mayer é, em si mesmo, a “imagem” de duas realidades demasiado evidentes para serem ignoradas, sendo a primeira delas a necessidade do poder político em criar ilusões – que reiteradamente não parece em condições de tornar reais - a troco de um punhado de votos e a segunda aquela que ninguém parece querer assumir, isto é, que o Parque Mayer é em si mesmo uma ilusão.

Uma espécie de síntese de uma tragicomédia representativa de um esplendor passado sem qualquer viabilidade futura, à imagem de alguém que sofrendo de uma doença terminal se recusa a assumir tal facto ao mesmo tempo que ninguém tem a coragem de lha revelar. Assim vão as cousas.

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