domingo, 10 de março de 2013

Bom e bonito



Quando, em Setembro último, faleceu a maior referência portuguesa contemporânea da denominada música erudita, o compositor Emanuel Nunes, entendi que a sua abordagem a esta forma de arte era, em si mesmo, merecedora de uma reflexão sobre o contexto mais vasto do que é a arte si mesmo.

À memória surge-me uma frase do actor Gerard Depardieu no filme “Green Card” que, depois de tocar ao piano uma obra totalmente atonal olhando para o ar de espanto do seu “público” de ocasião, diz simplesmente “C’est pas du Mozart”, literalmente traduzível por “Não é Mozart”.

 De facto, esta espécie de justificação, quase pedido de desculpa, remete para a noção da percepção que cada um de nós tem da arte, independentemente da forma de expressão da mesma.

A arte, nas suas diferentes formas, é uma realidade que se encontra nos antípodas de uma possível caracterização estática, acompanhando o Homem desde o início dos tempos, evoluindo em função da sua própria evolução, criando invariavelmente roturas com o passado.

Esse movimento de rotura foi sempre “visto” por uns como um evento “natural” e imediatamente assimilável e por outros como uma verdadeira afronta aos modelos até então em vigor, resultado prático de uma tendência natural para uma certa aversão à mudança por boa parte do Ser Humano.

Com maior ou menor resistência, a “força” dos tempos sempre prevaleceu sobre as vontades individuais, levando à assimilação por parte das gerações seguintes das novas tendências, criando uma dinâmica que, qual pedra lançada ao espaço, podendo desacelerar, não mais deixará de seguir o seu caminho.

No entanto, nos períodos de alguma estabilidade artística e antes de qualquer nova mudança, sempre houve aqueles que, antecipando-se aos tempos que haveriam de vir, “forçaram” as referidas roturas, numa espécie de movimento “avant la lettre”, sendo estes aqueles que normalmente haveriam de ser vistos com maior desconfiança.

Esta rotura temporal quase sempre criou para os respectivos autores uma espécie de “olhar desconfiado” não apenas por parte daqueles que são os destinatários finais de qualquer forma de arte, isto é, o público, mas igualmente entre os seus próprios pares.

Na génese de todos estes movimentos está e estará sempre uma visão pessoal sobre a arte e tudo aquilo que nos rodeia, que poderá ou não “beneficiar” de uma maior ou menor adesão por parte de quem com ela se “confronta” sem, contudo, jamais perder essa individualidade.

Por isso se justifica que, no mesmo mundo onde um dia houve Mozart, também possa haver um Emanuel Nunes, ou onde houve Michelangelo possa existir Picasso ou ainda que no mesmo país se possa simultaneamente desfrutar da escrita de Eça de Queiroz e de António Lobo Antunes.

A livre expressão artística é, em si mesmo, uma forma de manifestação de democracia, sendo precisamente em períodos de ditadura que normalmente se procura impor uma espécie de arte de regime, aquela que deverá ser aceite por todos e, consequência disso mesmo, à perseguição - essa forma suprema de incompreensão – de quem a tal se opuser.

O “problema”, mesmo no pior dos tempos, é que a arte não foi nem nunca será consensual. E ainda bem. Assim vão as cousas.

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