domingo, 15 de julho de 2012

Prazo de validade

O distanciamento temporal relativamente à ocorrência de certos factos é, normalmente, o elemento indispensável a uma análise não necessariamente correcta, mas certamente equidistante em relação à prodiga reacção “a quente” que normalmente se verifica quando a demanda por uma explicação se verifica em momento em que ocorrem os factos que a determinam.
Em certas vertentes esse distanciamento é, em si mesmo, obrigatório, nomeadamente ao nível do estudo da História, perspectivando-se nessa ciência que qualquer análise despojada de preconceitos apenas estará em condições de ser feita decorrido que seja, no mínimo, um quarto de século.
Não penso que o assunto que motiva a presente dissertação careça de tal hiato temporal mas, ainda assim, será razoável perspectivar uma reanálise aos factos que determinaram num certo dia feriado de 1 de Maio a corrida desenfreada a uma superfície comercial em busca de um almejado desconto de 50% em compras superiores a 100€.
Não é sequer do ponto de vista do operador que a questão merece agora a minha atenção, pois certamente a leitura que é possível fazer hoje como então não varia significativamente, na medida em que poucas dúvidas restam de se ter tratado de uma “jogada” comercial – aparentemente com contornos de ilegalidade – do qual o referido operador não se terá certamente colhido qualquer prejuízo, bem pelo contrário.
O que me interessa focalizar é a razão pela qual largas centenas – milhares? – de pessoas se prestaram a um exercício de auto-fustigação em busca de mantimentos como se repente alguém tivesse anunciado que o Mundo acabaria precisamente no dia seguinte.
A explicação mais evidente é a que remete para a “oportunidade” do negócio, a partir do qual é feito o “convite” às pessoas para num dia determinado poder comprar muito com pouco.
A questão é, no entanto, um pouco mais profunda, uma vez que tal “convite” surge num momento de crise económica e, sobretudo, de crise social, em que o acesso a determinados bens parece começar a ser uma pálida imagem de uma Sociedade habituada a nível de vida pautado por índices médios de riqueza e a enraizados hábitos de consumo.
Ora o que ficou claramente evidente é que estes hábitos – ou não fossem eles isso mesmo – custam a desprender-se de quem a eles se habituou e por isso mesmo ao tal “convite” para gastar as pessoas responderam de forma afirmativa, adquirindo porventura aquilo que necessitavam e, com toda a certeza, muito daquilo que não necessitavam, uma vez que só dessa forma poderiam alcançar a “meta” nada psicológica dos 100€ a partir dos quais poderiam beneficiar do tão almejado desconto.
E fizeram de forma assertiva, por vezes mesmo selvática, lembrando outras “corridas” bem dramáticas de populações a dirigirem-se de forma desesperada para os camiões que lhes traziam a comida que lhes faltava.
É certo que noutras paragens – bem mais ricas por sinal – existem datas certas para eventos de natureza idêntica, nas quais se oferecem oportunidades de “negócio” em grandes cadeias de venda a retalho, originando igual procura do melhor lugar na fila para entrar a que corresponderá presumivelmente o mais rápido acesso ao artigo desejado.
Não foi, contudo, este tipo de evento que se passou no denominado “Dia do Trabalhador”.
O que se passou nesse dia foi uma espécie de alinhamento astral planetário ou dizendo de outra forma, a confluência num só momento de bem engendrada manobra mediática, num momento de crise económica profunda aliado à propensão consumista de um povo com memória curta que parece ignorar que foi precisamente pela “facilidade” com durante anos a fio cedeu a estas mesmas manobras que levaram a um sobre-endividamento de grande parte das famílias.
Recordo-me da alegoria do burro a quem o dono colocou uma cenoura à frente do nariz para o motivar a trabalhar, não percebendo que – fazendo jus à sua categoria animal – jamais poderia alcança-la.
Não querendo recorrer ao insulto fácil para estabelecer a analogia pretendia, a sensação que me percorre é que de alguma forma se continua a cair facilmente no mesmo engodo, levando-nos a correr atrás do almejado vegetal, ignorando que ele se encontra cada vez mais distante de nós. Assim vão as cousas.

Sem comentários:

Enviar um comentário