O distanciamento temporal relativamente à
ocorrência de certos factos é, normalmente, o elemento indispensável a uma
análise não necessariamente correcta, mas certamente equidistante em relação à
prodiga reacção “a quente” que normalmente se verifica quando a demanda por uma
explicação se verifica em momento em que ocorrem os factos que a determinam.
Em certas vertentes esse distanciamento é, em
si mesmo, obrigatório, nomeadamente ao nível do estudo da História,
perspectivando-se nessa ciência que qualquer análise despojada de preconceitos
apenas estará em condições de ser feita decorrido que seja, no mínimo, um
quarto de século.
Não penso que o assunto que motiva a presente
dissertação careça de tal hiato temporal mas, ainda assim, será razoável
perspectivar uma reanálise aos factos que determinaram num certo dia feriado de
1 de Maio a corrida desenfreada a uma superfície comercial em busca de um
almejado desconto de 50% em compras superiores a 100€.
Não é sequer do ponto de vista do operador que
a questão merece agora a minha atenção, pois certamente a leitura que é
possível fazer hoje como então não varia significativamente, na medida em que
poucas dúvidas restam de se ter tratado de uma “jogada” comercial –
aparentemente com contornos de ilegalidade – do qual o referido operador não se
terá certamente colhido qualquer prejuízo, bem pelo contrário.
O que me interessa focalizar é a razão pela
qual largas centenas – milhares? – de pessoas se prestaram a um exercício de
auto-fustigação em busca de mantimentos como se repente alguém tivesse
anunciado que o Mundo acabaria precisamente no dia seguinte.
A explicação mais evidente é a que remete para
a “oportunidade” do negócio, a partir do qual é feito o “convite” às pessoas
para num dia determinado poder comprar muito com pouco.
A questão é, no entanto, um pouco mais
profunda, uma vez que tal “convite” surge num momento de crise económica e,
sobretudo, de crise social, em que o acesso a determinados bens parece começar
a ser uma pálida imagem de uma Sociedade habituada a nível de vida pautado por
índices médios de riqueza e a enraizados hábitos de consumo.
Ora o que ficou claramente evidente é que estes
hábitos – ou não fossem eles isso mesmo – custam a desprender-se de quem a eles
se habituou e por isso mesmo ao tal “convite” para gastar as pessoas
responderam de forma afirmativa, adquirindo porventura aquilo que necessitavam
e, com toda a certeza, muito daquilo que não necessitavam, uma vez que só dessa
forma poderiam alcançar a “meta” nada psicológica dos 100€ a partir dos quais
poderiam beneficiar do tão almejado desconto.
E fizeram de forma assertiva, por vezes mesmo
selvática, lembrando outras “corridas” bem dramáticas de populações a
dirigirem-se de forma desesperada para os camiões que lhes traziam a comida que
lhes faltava.
É certo que noutras paragens – bem mais ricas
por sinal – existem datas certas para eventos de natureza idêntica, nas quais
se oferecem oportunidades de “negócio” em grandes cadeias de venda a retalho,
originando igual procura do melhor lugar na fila para entrar a que
corresponderá presumivelmente o mais rápido acesso ao artigo desejado.
Não foi, contudo, este tipo de evento que se
passou no denominado “Dia do Trabalhador”.
O que se passou nesse dia foi uma espécie de
alinhamento astral planetário ou dizendo de outra forma, a confluência num só
momento de bem engendrada manobra mediática, num momento de crise económica
profunda aliado à propensão consumista de um povo com memória curta que parece
ignorar que foi precisamente pela “facilidade” com durante anos a fio cedeu a
estas mesmas manobras que levaram a um sobre-endividamento de grande parte das famílias.
Recordo-me da alegoria do burro a quem o dono
colocou uma cenoura à frente do nariz para o motivar a trabalhar, não
percebendo que – fazendo jus à sua categoria animal – jamais poderia
alcança-la.
Não querendo recorrer ao insulto fácil para
estabelecer a analogia pretendia, a sensação que me percorre é que de alguma
forma se continua a cair facilmente no mesmo engodo, levando-nos a correr atrás
do almejado vegetal, ignorando que ele se encontra cada vez mais distante de
nós. Assim vão as cousas.
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