A fonte da nossa inspiração surge normalmente associada a factos mais ou menos relevantes que a (quase) todos dizem respeito e que invariavelmente nos afectam de alguma forma ou, no mínimo, captam a nossa atenção.
No entanto, na aparente banalidade de um qualquer dia é possível igualmente extrair a inspiração necessária à extrapolação de um simples facto para realidades bem mais amplas e concretas.
Resulta este entendimento de uma visita recente a uma clínica privada a propósito de uma consulta de especialidade (pouco relevante para o efeito), a qual se encontrava agendada para as 11 horas da manhã.
Conforme é meu hábito cheguei ao local por antecipação à hora marcada em cerca de 9 minutos para ser integralmente preciso, tendo saído do local de trabalho cerca de meia hora antes já a contar com o tempo de deslocação necessário para chegar ao meu destino.
Munido da minha senha aguardei pacientemente pela minha hora (salvo seja) que invariavelmente - como é timbre do tempo desde que universo teve o seu primeiro minuto – acabou por chegar.
O que não chegou foi aquele som característico que anuncia que é chegada a nossa vez de cumprir o objectivo para o qual ali nos dirigimos.
Percebendo que tal fase purgatória se mantinha inalterada questionei um aprumado recepcionista sobre o fundamento para o relaxe temporal, inconscientemente convicto que provavelmente teria falhado um expediente processual que impedia em termos concretos que o numero que me havia calhado em sorte fosse merecedor de alguma atenção.
Fui informado que tal não se verificaria e que seria chamado directamente à sala do “Senhor Doutor” pelo que deveria aguardar, o que naturalmente fiz sem reclamar.
Eis que então decorridos 35 minutos após a hora convencionada uma outra senhora igualmente trajada a rigor informou todos aqueles a quem o assunto pudesse interessar que o “Senhor Doutor” estava agora a sair do Hospital e demoraria ainda mais 20 minutos a chegar, sugerindo que me sentasse mais próximo do gabinete de consultas, como se desse facto resultasse uma qualquer diminuição do tempo de espera.
Decidi então que esperaria os ditos minutos a mais como se de um tempo de desconto futebolístico se tratassem após o que iria solicitar o acesso ao livro de que todos já ouvimos falar mas que não se encontra à venda nas livrarias nem sequer exposto nas estantes dos locais onde o mesmo se encontra presente, o tal a que se convencionou chamar de “Livro das Reclamações”.
Chegado ao meio-dia, isto é, precisamente 60 minutos após a hora marcada levantei-me para requisitar o dito livro, convicto que o sintoma que me havia levado ao local seria certamente menos doloroso do que as provações que se seguiriam ao referido pedido.
Coisa do destino, no preciso momento em que tal sucede eis que o número que consta da minha senha se torna coincidente com aquele que agora surgia no televisor de canal único que anuncia as chamadas ao balcão ou ao gabinete.
Não pretendendo tomar mais tempo a mim próprio do que aquele que já havia perdido virei à direita relativamente ao sentido inicial do trajecto em direcção ao gabinete que me havia calhado em sorte com a firme convicção de que a ausência de qualquer pedido de desculpas por parte do “Senhor Doutor” implicaria um refrescar da minha intenção inicial de pedir o acesso ao livro em que cada página tem 3 vias.
Felizmente e para minha grande surpresa - devo confessar – eis que a primeira palavra que ouço ao entrar é precisamente aquela que julgava ser tão inacessível como um dia Portugal voltar a ter um rating triplo AAA.
Terminada a consulta e efectuado o pagamento, curiosamente as fases que menor tempo carecem de espera nestas ocasiões, regressei ao local de trabalho onde cheguei às 12.30h, isto é duas horas depois daí ter partido.
Qual é a moral desta história? Em bom rigor não há uma moral, mas sim várias morais.
A primeira é a que resulta da incapacidade endémica de boa parte da população portuguesa em cumprir horários e, no essencial, respeitar todos aqueles que pelo facto de os cumprirem acabam quase sempre vergados à “vontade” dos primeiros.
A segunda parece ser caracterizável como a doença da insensibilidade de que padece uma parte dos membros de uma classe que apesar de terem decidido para eles próprios tratar dos males do corpo das pessoas parecem apresentar demasiado frequentemente uma dificuldade de contacto com essas mesma pessoas, facilmente caracterizável como sobranceria e arrogância de quem porventura entende que pelo facto de poder ter a vida ou morte de alguém ao alcance das suas mãos ou de um mero diagnóstico se julga uma espécie de encarnação de Deus na Terra.
No caso vertente as desculpas apresentadas não escondem o facto de há hora marcada para a consulta o “Senhor Doutor” estar num outro local (independentemente do motivo que lhe subjaz) a exercer precisamente a mesma ciência, prova de que no capítulo da ubiquidade Deus fez questão de não partilhar os seus dons específicos.
A terceira conclusão é aquela que é mais introspectiva, isto é, a que resulta da necessidade de acentuar a nossa própria convicção do direito à reclamação como forma de vincar a insatisfação pela forma com um determinado serviço (pago ou não) foi incorrectamente prestado ou não foi realizado de todo.
Esta será talvez a mais complexa de todas porque colide directamente com a cultura de um povo que vai precisamente no sentido oposto, que prefere a contemplação à contestação, agravada em muitas situações por um acentuado temor reverencial à luz do qual sairá – presuntivamente – ainda mais prejudicado.
A quarta moral é a ausência de produtividade que este tipo de situações provoca na Sociedade se multiplicado por um número provavelmente não registado mas certamente suficientemente amplo para implicar um impacto negativo na economia das empresas.
Somadas as horas de abstenção ao trabalho por motivos que não se prendem com razões meramente atribuíveis aos próprios empregados mas apenas em função de uma lógica laxista que remete para a falta de rigor na gestão dos compromissos que se assumem facilmente se conclui que ultrapassará largamente os 4 dígitos de horas.
A quinta e última moral da história é a constatação de que tudo isto se passou num “working day” e não num qualquer feriado ou ponte, reforçando a minha convicção que não será por via da ausência destes eventos fortuitos que a produtividade e a competitividade do país irá crescer, mas sim em função de tudo o que (não) se fizer nos restantes dias.
Se por esta altura os portugueses já foram “informados” que para o ano não haverá direito ao feriado do Carnaval parece, ainda assim, mais do que evidente que o “pagode” irá perdurar por muitos e bons anos. Assim vão as cousas.
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