Na época de ouro da literatura portuguesa um dos seus maiores expoentes – Camilo Castelo Branco – escreveu uma das suas mais célebres páginas literárias, cujo titulo tomei a liberdade de usurpar.
Nesse livro a personagem principal, Calisto Eloi, representa a figura de um homem puro que se deixa corromper pelo poder, pela cidade e, sobretudo, pela política.
O aspecto caricatural desta personagem ilustra na perfeição a forma de estar dos auto-denominados independentes que vagueiam na nossa esfera política e que, resguardando-se por detrás de uma presuntiva autonomia de ideias e ideais, surgem apesar disso alinhados com a filosofia politica de uma determinada estrutura partidária.
“…as ideias que defende o Bloco de Esquerda são as ideias que eu tenho defendido nos meus livros, nos meus editoriais, nas minhas conferências, nos meus protestos, nos meus escritos. É por isso que aceitei dar a cara para o Parlamento Europeu em nome do Bloco de Esquerda…”
(Discurso de apoio de Fernando Nobre ao Bloco de Esquerda em 2009)
No entanto, e tal como sucedeu à ilustre personagem Camiliana, também estes independentes depressa cedem rapidamente à mais básica tentação de poder e protagonismo.
A verdade é que esta auto-intitulada independência é arvorada por oposição à militância partidária mas, em bom rigor, esgota-se nesse mesmo elemento.
A não ser assim, seriamos forçados a pensar que a confluência de ideias que se verifica entre um independente e o partido (de governo ou não) com o qual colabora activamente, inclusivé em funções ministeriais ou ministeriáveis, seria uma mera relação de oportunismo, em que duas partes nada teriam em comum, mas em que ambos pretendem obter benefícios próprios dessa relação.
Nos últimos tempos tem surgido uma nova expressão associada aos independentes e que é utilizada, não raras vezes, de forma perfeitamente gratuita.
Essa expressão é a da cidadania.
Uma vez mais os “beneficiários” directos das expressões são as que mais a utilizam, e fazem-no por convicção que a sua qualidade de cidadãos exemplares os coloca à margem da militância partidária e da própria classe política.
No fundo quer os independentes quer os arautos da cidadania (quando não são a mesma pessoa) defendem estar à margem da própria política e das politiquices, procurando a sua distinção social em função da sua experiência de vida e da sua intervenção cívica.
As duas últimas eleições presidenciais pareceram querer fazer-nos crer que existia na nossa Sociedade um espaço de manobra bastante amplo, ainda que dificilmente ganhador, para os auto-denominados representantes da cidadania e, claro está, à margem dos aparelhos partidários.
Nunca comunguei desta opinião porque era relativamente simples perceber-se que grande parte dos votos (e foram muitos) recolhidos pelos dois candidatos que se apresentavam à margem do sistema – o que quer que isso seja – representava, no essencial, a confluência dos votos de insatisfação para com os candidatos oficiais de um mesmo partido, ainda que em eleições perfeitamente distintas.
Certamente que o grande dilema de ambos no dia seguinte ao das eleições terá sido o que fazer com aqueles votos.
Formar um partido seria porventura a solução lógica, mas tal iria colidir com a auto-imposta independência sobre a lógica partidária.
Optou-se em ambos os casos por tentar capitalizar ao máximo a confiança depositada pelos cidadãos na perspectiva de uma qualquer segunda oportunidade, reforçando o discurso da necessidade de intervenção cívica independente.
“…os altos detentores de cargos políticos deste país me têm contactado, porque querem todos saber o que é que eu vou fazer. Eu tenho-os tranquilizado a todos. Partido politico nem pensar, nunca! (…) Eu não aceitarei nenhum cargo partidário nem governativo. Está assente, determinado, não volto atrás!..”
(Entrevista do Dr. Fernando Nobre ao Jornal das 9 em 1 de Março de 2011)
Tudo isto será perfeitamente verdade até que a independência se confunda com a incoerência e, a partir desse momento, deixa de haver alguma coisa que os distinga daqueles com os quais eles próprios julgam não se identificar.
“Tenho a honra de anunciar que recebi há momentos a confirmação do dr. Fernando Nobre de que aceita o convite que lhe dirigi para ser, na próxima legislatura, o candidato do PSD a presidente da Assembleia da República. Desta forma o Dr. Fernando Nobre aceita integrar, como independente, as listas de candidatos a deputados do PSD, encabeçando a lista pelo distrito de Lisboa”.
(Comunicado do Dr. Pedro Passos Coelho na sua página no Facebook em 10 de Abril de 2011)
Sinto uma enorme vontade de reler a obra de Camilo (mas também de Eça), um independente de espírito demasiado à frente do seu próprio tempo e capaz de nos lembrar que existe (quase sempre) um possível Calisto Eloi dentro de cada um de nós. Assim vão as cousas.
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