domingo, 6 de janeiro de 2013

Choque frontal


A actual crise em que “vivemos” trouxe à evidência de todos um conjunto de realidades para as quais a nossa percepção – ou focalização – não se encontrava manifestamente desperta.

É como acordar repentinamente de um estado de inconsciência dormente em que boa parte de nós se encontrava e para a qual manifestamente não estávamos preparados e, consequentemente, em condições de a ela responder.

Não me refiro, contudo, à situação das contas públicas, o problema do financiamento do Estado, ou mesmo da fragilidade do sector bancário perante a elevada exposição à divida pública de alguns Estados em situação de iminente insolvência ou a ameaça, mais ou menos real, de uma saída da zona Euro.

Tudo isso, sendo igualmente parte da realidade que encima a presente dissertação, foi anteriormente objecto de uma exteriorização da minha convicção pessoal sobre a mesma, pelo que, desta feita, interessa-me em particular, abordar a vertente do impacto que a crise tem tido nos nossos hábitos de consumo.

E, muito em concreto, nos sectores da habitação, na restauração e na aquisição de determinados produtos.

O chamado “boom” da construção levou ao crescimento desenfreado de novas construções um pouco por todo o lado, situação da qual não resultava sequer uma redução dos preços por via de uma perspectiva de concorrência que, em termos práticos, não se verificava.

E não se verificava porque o suporte necessário para esse mesmo crescimento assentava na total disponibilidade por parte dos bancos para financiar a totalidade do investimento, por prazos quase superiores à esperança média de vida, com um custo de capital práticamente nulo, fruto de uma conjugação quase perfeita de juros baixos com “spreads” igualmente baixos e, não menos importante, com uma reduzida exigência relativamente às garantias (pessoais) da capacidade de cumprimento das condições do empréstimo.

Com tal conjuntura, fosse qual fosse o preço do imóvel, havia uma disponibilidade quase total das partes interessadas no negócio em facilitar a sua conclusão.

Na restauração a questão colocou-se num duplo plano, isto é, por um lado a constatação dos hábitos de consumo dos portugueses que de certa forma “abandonaram” o conceito de refeição nos respectivos lares (incluindo as refeições mais “ligeiras”) passando a frequentar com uma preocupante assiduidade cafés, restaurantes e similares, sem perspectivar o impacto daí resultante para a chamada economia familiar.

Por outro lado, verificou-se o crescimento exponencial dos denominados empresários da restauração que, quais cogumelos, abriam novos estabelecimentos em cada rua e em cada esquina, grande parte deles sem a mínima noção do conceito inerente à gestão deste tipo de locais.

Por último e sem querer desta forma afirmar que a possível lista de “vítimas” da crise fica desta forma concluída, verifico com particular atenção o que se passa com o sector automóvel e de bens de consumo como as televisões, telefones ou outros de natureza conexa.

E Portugal, neste capítulo específico, é um autêntico “case study”.

De facto, a transição entre um país que dispunha de um dos mais velhos parques automóvel da Europa para uma situação que se tornou de certa forma fácil encontrar em cada local o último modelo de cada marca (e normalmente o mais potente) foi feita, para não fugir ao tema, a "grande velocidade".

Este mesmo “fenómeno” verificou-se igualmente ao nível de outros bens em que qualquer aparelho recentemente adquirido rapidamente soçobrava perante o seu mais recente “upgrade” ou nova versão, sem que grande parte das pessoas – conscientemente – chegasse a disfrutar do anterior ou sequer percebesse em que é que o mais recente era efectivamente diferente (ou uma mais valia) relativamente ao anterior.

O resumo de tudo isto é que, fosse na construção, na restauração ou na compra de bens, a “fúria” consumista dos portugueses parecia incontrolável e insaciável.

Veja-se, contudo, qual o cenário com que nos confrontamos hoje.

Na habitação deixou práticamente de se construir porque não há ninguém para comprar na medida em que os bancos deixaram de emprestar dinheiro ou porque o mesmo é agora mais caro do que nunca ou dependente de garantias reais e pessoais que as pessoas não estão em condições de prestar.

O resultado? Falência em massa de empresas de construção, desemprego crescente no sector e acentuada incapacidade de cumprimento dos empréstimos por parte de quem os tinha contraído sem condições para tal ou sem perspectivar uma possível mudança do “clima” económico.

Na restauração verificou-se uma progressiva desertificação dos espaços, fruto do “regresso” a casa por parte das pessoas, que aí passaram a fazer as respectivas refeições (quase todas elas) ou, quando tal não era possível, levando para os seus próprios locais de trabalho as suas lancheiras, situação que, associada à subida da taxa de IVA, apenas veio trazer à “luz do dia” uma oferta excessiva e quase sempre indiferenciada.

O resultado? Encerramento sistemático de restaurantes e cafés e aumento do nível de desemprego no sector, sendo que parte significativa da respectiva mão-de-obra era assegurada por indivíduos de nacionalidade estrangeira, com as possíveis consequências sociais daí emergentes.

Por fim, constata-se a redução drástica da aquisição de bens - agora considerados como não essenciais -  os quais parecem voltar a ganhar uma “esperança de vida” muito próxima da que tinham antigamente, o que de facto nunca deixou de suceder apenas as pessoas tinham “deixado” de querer perceber isso mesmo.

O resultado? Forte retracção no consumo das famílias, da qual resulta uma diminuição dos resultados das empresas, cuja consequência principal é a deslocalização (ou encerramento) das mesmas e consequente aumento do número de desempregados.

Seja por onde for, a natureza e a consequência do problema são, como é fácil constatar, absolutamente coincidentes, tendo como resultado prático a explicação de parte (nada despicienda) do momento em que nos encontramos.

Nestas alturas é, porém, costume dizer-se que com as crises surgem igualmente as oportunidades e, neste capítulo, entendo que a oportunidade que se pode e deve extrair do ponto de vista das empresas é aquela que decorre do próprio reajustamento da oferta (e da própria qualidade dessa mesma oferta), que passará tendencialmente a situar-se a um nível adequado ao da procura.

Na perspectiva das famílias ou da economia familiar, conforme a nomenclatura preferida de cada um, a oportunidade que poderá advir do panorama actual é o de potenciar em cada um de nós a necessidade de uma gestão equilibrada das finanças pessoais, pensando cada vez mais numa perspectiva de médio-longo prazo, assimilando dessa forma uma palavra que se encontrava “arredada” do vocabulário geral, isto é, a necessidade de poupar.

Para aqueles que ainda o consigam fazer, claro. Assim vão as cousas.

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